MESTRE ECKHART — DO HOMEM NOBRE VI
Há outra forma de entender e ensinar o que Nosso Senhor compreende por “homem nobre”. Há que saber, com efeito, que os que conhecem a Deus sem véus, conhecem ao mesmo tempo a criatura. Se o conhecimento é a luz da alma, para a qual todos os homens tendem naturalmente, seguramente não existe nada melhor. Conhecer é um bem. Agora, os mestres ensinam-nos que quando se conhecem as criaturas tal como são em si mesmas — o que eu chamaria conhecimento vespertino — não se vê a criação senão em imagens diferenciadas. Porém, quando se conhecem as criaturas em Deus — o que chamaria de conhecimento matutino — se vê as criaturas sem a menor diferenciação, sem nenhuma das imagens que as representam e sem semelhança com qualquer coisa, na Unidade que é Deus mesmo. E isso é o que Nosso Senhor quer dizer quando diz que um homem nobre se foi. Nobre, porque é uno, e na Unidade conhece tanto a Deus como a criatura.
Vou contudo interpretar a doutrina do homem nobre em outro sentido, dizendo o seguinte: quando o homem (alma, espírito) vê Deus, tem consciência da visão e igualmente se percebe como sendo o que conhece; isso é, conhece sua própria contemplação e seu próprio conhecimento de Deus. A alguns tem ocorrido agora — o que parece completamente crível — que a flor e o coração da beatitude residem no conhecimento, quando o homem tem consciência de conhecer a Deus. Poderia eu, dizem, possuir todas as delícias do mundo sem me dar conta, e de que me serviria, como seriam deleite para mim?
Não posso aceitar essa forma de pensar. Fora verdade que a alma não pode ser feliz se não tem consciência de sua felicidade, não está ali a condição da felicidade; porque o primeiro fundamento da beatitude espiritual consiste em que a alma contemple a Deus sem véus; dali vem todo seu ser e toda sua vida; dali obtém a alma tudo o que ela é, na essência mesmo de Deus, e nada sabe do saber nem nada do amor, nem nada em absoluto de coisa alguma. Se repousa inteiramente no Ser de Deus, tudo o que sabe é que está ali, e não conhece outra coisa senão a Deus. Se, não obstante, toma consciência da visão de Deus, de seu amor e de seu saber, resulta que cai em seguida e que é expulsa do mais alto grau da hierarquia natural. Porque ninguém sabe que é branco se não o é realmente. Assim como quem sabe que é branco agrega uma superestrutura e acrescenta algo à essência de sua brancura, seu saber, com efeito, não lhe vem sem intermediação nem consciência da cor, porém a alma recebe este conhecimento e este saber de algo que agora é branco; não obtém o conhecimento unicamente da cor como ela é em si, senão que obtém este conhecimento e este saber de algo que já teve cor e se tornou branco, e é assim que se conhece como branca. Saber-se branco é inferior e muito mais extrínseco que ser branco. A parede difere totalmente dos fundamentos sobre os quais está construída
Os mestres ensinam que uma é a força pela qual o olho vê, e outra pela qual sabe que vê. O primeiro, o fato de ver, advém ao olho pura e simplesmente pela cor, e não por aquilo que possui a cor. Pouco importa, pois, que o colorido seja uma pedra ou um tronco, um homem ou um anjo: o que realmente importa é que o objeto tenha cor.
Igualmente, digo eu, o homem nobre toma e obtém todo o ser e toda a vida, toda sua beatitude, unicamente de Deus, por Deus e só em Deus, porém não no conhecimento,a contemplação e o amor de Deus etc. Por isso muito bem disse Nosso Senhor que toda a vida eterna consiste unicamente em conhecer a Deus como único e verdadeiro Deus, e não em conhecer alguém que conhece a Deus. Como poderia o homem conhecer seu conhecimento de Deus quando já nem se conhece a si mesmo?
Uma coisa é certa: se o homem chega a ser bem-aventurado, se é bem-aventurado até o fundo e a raiz da beatitude, não conhece mais a si mesmo e não conhece mais nada; não nada senão e somente a Deus. Porém, desde o momento que a alma conhece que conhece a Deus, tem conhecimento de Deus e de si mesma. Agora sim, a força pela qual o olho vê é, como expliquei antes, uma força distinta daquela pela qual o olho sabe e reconhece que vê.
Acrescente-se que agora e aqui embaixo, a força que produz em nós a consciência de nossa visão é mais nobre e elevada que a força que produz a própria visão; porque a natureza começa a operar pelo mais ínfimo. Porém Deus começa sua obra pelo mais perfeito. A natureza faz sair o homem da criança, e o pinto do ovo, porém Deus faz o homem antes da criança, e o pinto antes do ovo. A natureza começa por esquentar e queimar o lenho, e só depois o faz arder. Porém Deus começa por dar a toda criatura o ser, e só depois, no tempo, porém às vezes fora do tempo e sem nada que pertença ao tempo, todas as propriedades que correspondam a sua natureza corporal. Igualmente, Deus dá o espírito Santo antes dar os dons do Espírito Santo.
Por isso agora eu digo: certamente, não há beatitude sem que o homem tome consciência plena de que vê a Deus e que conhece a Deus, porém Deus não quer de nenhuma maneira que tal seja o fundamento da beatitude. Quem preferir outra coisa que a arranje como puder; a mim me dá pena. O calor do fogo e a essência do fogo são duas coisas muito diferentes, é admirável ver o quanto estas realidades estão distantes uma da outra na natureza, ainda que no tempo e no espaço estejam muito próximas entre si. A visão de Deus e minha visão estão totalmente distantes e são dessemelhantes .
Por isso Nosso Senhor disse com toda propriedade que um homem nobre foi a um país distante para ganhar um reino e voltar para sua casa. Porque o homem deve ser uno em si mesmo; essa unidade, é necessário que busque em si mesmo e na Unidade; é necessário que a receba na Unidade e, consequentemente, não deve contemplar senão a Deus. Logo tem que “votar”, isto é, saber e reconhecer que conhece a Deus, que algo sobre Ele.
Tudo o que eu digo aqui, já o havia indicado o profeta Ezequiel com estas palavras: “Uma águia poderosa, de grandes asas e farta plumagem, veio à montanha pura, apanhou o coração e a medula da árvore mais alta, arrancou a ponta mais elevada e deixou-a cair”. Aquele que Nosso Senhor chama de homem nobre, o profeta denomina-o de grande águia. Há alguém mais nobre que aquele que nasceu do mais elevado e mais nobre na criação, pelas entranhas da natureza divina e de sua solidão?
Nosso Senhor disse pela boca do profeta Oséas: “Conduzirei as almas nobres a um deserto e ali lhes falarei ao coração”, a Unidade com a Unidade, a Unidade saindo da Unidade, a Unidade na Unidade, e, na Unidade, a Unidade eternamente!