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MESTRE ECKHART — DO HOMEM NOBRE III

O primeiro estágio do homem interior, do novo homem, como disse Santo Agostinho, é que o homem viva imitando aos homens bons e santos, que caminhe, porém, apoiando-se em assentos e paredes, e que se nutra ainda de leite.

O segundo estágio, é quando, em vez de fixar-se unicamente em modelos ou em homens bons, corre com pressa para os ensinamento e conselhos de Deus e da Sabedoria divina, dá as costas aos homens e o rosto a Deus, solta a saia de sua mãe e sorri a seu Pai celeste.

No terceiro estágio, o homem se abstém mais e mais da influência da mãe e afasta-se cada vez mais do seio materno, foge das preocupações e rechaça todo temor. Ainda que tenha a possibilidade fazer o mal ou de enganar alguém sem receber em troca nenhum castigo, sem dúvida não o faria nunca: pelo Amor, com efeito, está unido a Deus e Nele confiante, com zelo constante, até que Deus o tenha colocado e estabelecido na alegria e doçura, ali onde resiste a tudo que seja dessemelhante e estranho, tudo o que não convém a Deus.

No quarto estágio, o homem cresce mais e mais e deita raízes no amor de Deus, a ponto de estar sempre disposto a assumir, de boa vontade e coração, avidamente e com alegria, todas as atribulações e provas, desgostos e penas.

No quinto grau, o homem vive em paz, sempre e em todo lugar, calmo e tranquilo na riqueza e no gozo da mais alta e indizível Sabedoria.

No sexto estágio, o homem está despojado de si mesmo e revestiu-se da eternidade de Deus, chegou à perfeição completa. Esqueceu a vida do mundo com tudo o que tem de efêmero. Foi arrastado e transformado em uma imagem divina: chegou a ser filho de Deus. E não há outro estágio superior: segue-se o repouso eterno, a beatitude. Porque o fim do homem interior, do homem novo, é a vida eterna.

Sobre o tema do homem interior, desse homem nobre, no qual foi impressa a imagem de Deus e semeada a semente de Deus, como essa semente e essa imagem da natureza e da essência divinas, que são o próprio Filho de Deus, revelam-se e como se toma consciência delas, como ocorre quando estão escondidas, tudo isso o grande mestre Orígenes expõe-nos em uma parábola: O Filho de Deus, disse, a imagem de Deus, é, no fundo da alma, como uma fonte de água viva. Quando ela encontra terra, isto é, os desejos terrestres, permanece encoberta e escondida até tornar-se irreconhecível e passar desapercebida. Porém tem vida em si mesma. Logo que se retira a terra que cobre sua superfície, reaparece e pode ser vista. Disse também que essa verdade está indicada no primeiro livro de Moisés, onde está escrito que Abraão tinha cavado em seu campo poços de água viva, mas que pessoas mal-intencionadas tinham-nos coberto com terra; porém, retirada a terra, as fontes reviveram.

Existem ainda outras parábolas sobre este tema. O Sol brilha sempre; porém se uma nuvem ou uma neblina vem e interpõe-se entre nós e o Sol, deixamos de ver sua luz. O mesmo ocorre com o olho, que quando está enfermo e débil não percebe a luz. Inclusive eu às vezes tenho feito uma comparação surpreendente: quando um artista cria uma estátua de madeira ou pedra, não a introduz na matéria, antes, pelo contrário, retira os excessos que a escondiam e cobriam. Nada agrega à madeira, mas, por certo, retira lhe algo: sob (o golpe do) cinzel cai tudo o que é exterior e são eliminadas as rugosidades para que então possa resplandecer o que estava oculto dentro). Assim é o tesouro oculto no campo de que fala Nosso Senhor.

Disse Santo Agostinho, que quando a alma do homem se volta inteiramente para a eternidade, para o alto, apenas para Deus, a imagem de Deus se mostra nela e brilha, porém quando a alma se volta para o exterior, inclusive em exercícios de virtude, a imagem se esconde por completo. Por isso é que, segundo São Paulo, as mulheres devem cobrir a cabeça e os homens devem tê-la descoberta; porque a parte da alma que tende para baixo busca o objetivo para o qual vai, um véu para si própria; porém a outra parte da alma, que se eleva, desnuda-se para receber a imagem de Deus e para que Deus se una a ela, Deus está sem véu e desimpedido na alma pura do homem nobre.

Do mesmo modo, a imagem de Deus, o Filho de Deus, a semente da natureza divina, nunca desaparece em nós ainda que possa ter escondida. Davi disse em um de seus salmos: “A verdadeira luz brilha nas trevas ainda que não percebamos.”

No Cântico dos Cânticos é dito: “Não olheis que sou morena, porque sou bela e atraente, é só que o Sol me bronzeou”. O Sol é a luz deste mundo: significa que tudo o que há de mais elevado, de melhor na criação, cobre e descolore a imagem de Deus em nós. “Remove as escórias da prata — disse Salomão — e brilhará e luzirá o mais puro vaso, a imagem de Deus na alma”.

Essa é a intenção de Nosso Senhor quando disse que um homem nobre se foi. É necessário, com efeito, que o homem se desapegue de todas as imagens de si mesmo , que se torne totalmente diferente e distinto de todas as coisas, se em verdade quer vir a ser o Filho de Deus e receber a filiação no seio e no coração do Pai. Porque toda mediação é estranha a Deus.