Historia Lausiaca Prologo

História Lausíaca — Prólogo
PRÓLOGO
1) Através dos tempos, são numerosos os que escreveram sobre as mais diversas épocas. Uns, inspirados pela graça, dom de Deus, desejavam edificar e confortar os que seguem na os ensinamentos do Salvador. Outros, só querendo agradar aos homens, escreveram mil loucuras por vangloria; outros, enfim, presa de uma quase demência e influenciados pelo demônio, inimigo do bem, planejaram, em seu orgulho cheio de ciúme, perder os homens superficiais e medíocres e manchar a pureza da Igreja universal, multiplicando os obstáculos a uma vida santa.

2) Respeitando a ordem que me deste para o progresso das almas, o homem doutíssimo, também eu tenho meu humilde plano. Ha 33 anos sou monge, e bispo ha 20; tenho 56 anos de idade. Desejas que eu fale detalhadamente dos Pais que vi, homens e mulheres, ou dos quais ouvi falar; de todos os que encontrei no deserto do Egito, na Líbia, na Tebaida, em Siena e nos Tabenesiotas; depois, na Mesopotâmia, na Palestina e na Síria; enfim, no Ocidente: em Roma, na Campânia e nos arredores. Meu plano e o seguinte: escrever-te este livrinho, narrando tudo desde o início.

3) Com isso desejaria fornecer-te um precioso memorial, antídoto do esquecimento e apoio precioso para desfazer-te de tudo que te possa entravar ; não só do torpor provocado pela concupiscência, como da indecisão ou da negligencia no necessário cotidiano; da preguiça e da pusilanimidade, da aspereza, inquietação e medo excessivo e também da agitação do mundo… Desembaraçado de tudo isso, progredirás num desejo contínuo, em tua resolução de servir a Deus. Assim tornar-te-ás um guia para ti mesmo, para teus parentes, para aqueles a quem diriges e também para o piedosíssimo imperador. Por meio de tais obras e que os amigos de Cristo se esforçam por unir-se a Deus. Aguardarás, assim, cada dia, a libertação de tua alma, como está escrito: “Ê bom partir e estar com o Cristo” (Fl 1,23), e ainda: “Prepara tuas obras para a partida e mantém-te preparado no teu campo” (Pr 24, 27). Quem se recorda assiduamente da morte e da sua vinda inevitável e próxima, jamais cairá em pecado grave; sabe sobre que se fundamentam os mandamentos e não pensara em zombar da rudeza e inelegância de sua expressão. O ensinamento divino nada tem a ver com finezas de linguagem. Seu único fim e persuadir o espírito pela Verdade, como está escrito: “Abre tua boca à Palavra de Deus” (Pr 31,8) e ainda: “Não desprezes os discursos dos velhos, por que eles aprenderam com seus pais” (Sir 8,9).

5) Seguindo essa sentença, estive em contato com grande número de santos e não somente por pensamento. Caminhei durante trinta dias, por três vezes e, depois de ter praticamente percorrido a pé, na presença de Deus, todo o território romano, não recuei diante dos incômodos da viagem, para reencontrar um amigo de Deus e adquirir, assim, o que me faltava.

6) O próprio Paulo, que me é muitíssimo superior por sua vida, ciência e , fez questão de ir de Tarso a Judéia para encontrar Pedro, Tiago e João. Ele fala disso com certa ostentação, descrevendo longamente suas provações, para estimular os preguiçosos e negligentes: “Fui a Jerusalém para ver Cefas”, diz ele (Gl 1,18). Tudo que ouvira sobre a grandeza de Pedro não lhe era suficiente, mas desejava vivamente ver a sua face. Com muito mais razão de_ veria eu fazer o mesmo, eu, o devedor de dez mil talentos (Mc 18,24)) não para ser útil aos que visitava, mas no meu próprio interesse, eu, pecador.

7) Os que escreveram a vida dos santos Patriarcas Abraão, Isaac e Jacó, Moisés, Elias e outros, as narraram não tanto para exaltá-los, mas para serem úteis a seus leitores.

Tudo sabes de tudo isso, Lauso, fiel servo do Cristo e a ti mesmo exortas. Suporta, pois, ainda minha loquacidade para manteres teu pensamento no amor de Deus. Por natureza ele é versátil, presa de toda espécie de más influências, mas a prece continua, unida ao cuidado de seu verdadeiro interesse, pode conserva-lo sereno.

8) Muitos irmãos, educados no temor de Deus, fortes por suas rudes observâncias, por suas esmolas ou por sua castidade perfeita, que se fiavam em suas prolongadas meditações, nos livros santos e no seu amor a doutrina, não alcançaram, contudo, a impassibilidade, por falta de discernimento. Sob o pretexto de melhor servir a Deus, envolveram—se numa multiplicidade de coisas exteriores, que só levam a desordens culpáveis e fazem perder o hábito da prática do bem.

Sê, portanto, bastante corajoso em não acumular riquezas. Aliás, e isto que tens feito. No teu amor pela virtude, generosamente te despojaste, distribuindo teus bens aos necessitados. Mas sobretudo nunca entraves tua resolução com um juramento, como fazem alguns, levados por um impulso absurdo ou por pura presunção. Para serem vistos ou para se gloriarem de não comer nem beber, esses perderam sua liberdade por um juramento e depois a ele faltaram lamentavelmente, apegados demais como estavam à vida e ao prazer ou desencorajados. Tornaram-se perjuros, dor pungente! Tomando alguma coisa ou dela te abstendo por justo motivo, não pecas.

10) A razão em nos, que e divina, sabe rejeitar o que nos prejudica e escolher o que nos convém: “a Lei, com efeito, não foi instituída para o justo” (1 Tim 1,9). É melhor tomar vinho com discernimento do que água com orgulho. Considera os santos que beberam vinho guiados pela razão e os ímpios que beberam água sem discernimento: não é a coisa que se deve censurar ou louvar, mas a intenção dos que dela usam, bem ou mal. José bebeu vinho entre os egípcios, sem que isso o prejudicasse, porque seu espírito era firme.

11) Pitágoras bebia água como Diógenes e Platão; os maniqueus também e todos esses pretensos filósofos. Sua intemperança, porem, foi tal que, em sua vaidade, eles desconheceram a Deus e adoraram ídolos. Os companheiros do apóstolo Pedro, por outro lado, tomaram vinho e os judeus, por isso,censuraram seu mestre, o Salvador, por sua participação nas refeições, dizendo: “Por que teus discípulos não jejuam, como os de João?” (Mc 2,18). E insultavam também os discípulos: “Vosso Mestre”, diziam, “come e bebe com os publicanos e pecadores” (Mt 9, 11)« Eles nada teriam dito se se tratasse de pão e água. Suas censuras visavam certamente a carne e o vinho.

12) O Salvador, por seu lado, disse aos que tinham uma admiração excessiva pelos que só bebiam água e censuravam o uso do vinho: “João veio no caminho da justiça, não comendo nem bebendo” (Mt 21,32) — evidentemente carne e vinho, pois, sem o resto, ele não teria podido viver! — “e dele se disse: “Ê um possesso! Vem o Pilho do homem, comendo e bebendo e se diz: “Ê um glutão, um beberrão, amigo dos publicai nos e dos pecadores” (Mt 11,18-19).

Como nos comportarmos? Não nos preocupemos com os detratores nem com os admiradores. Jejuemos com João, se a razão a isso nos impele, mesmo se disserem: “Estão possessos!” Com Jesus sejamos sábios, bebendo vinho, se ele for necessário ao nosso corpo, mesmo que se diga “São glutões e beberrões”.

13) O que conta não é o comer ou se abster,mas “a que opera pela caridade” (Gl 5,6). Quem age em tudo com , pode comer e beber sem que isso seja condenável. Com efeito, só “o que não procede da e pecado” (Rm 14,23). Quanto aos pecadores, que comem ou agem por cobiça ou com uma consciência corrompida, afirmando que se apóiam na , nosso Senhor ensinou como identificá-los: “Por seus frutos os conhecereis” (Mt 7,6). Os frutos dos que são conduzidos pela sabedoria espiritual são: “caridade, alegria, paz, paciência, doçura, bondade, , humildade, auto-domínio”. O próprio Apóstolo dizia que isso é “o fruto do Espírito” (Gl 5,22).

14) Aquele que quer produzir tais frutos não usara, imoderada ou irrefletidamente, da carne nem do vinho e não viverá em má consciência com pessoa alguma. Diz Paulo ainda: “Todo atleta sabe dominar-se em tudo” (l Cor 9,25). Quando está com boa saúde, abstém-se do supérfluo; quando está doente ou triste e enfrentando provações, toma alimento e bebida como remédio, mas abstém-se de tudo que pode ser nocivo a alma: a cólera, a raiva, a vanglória, a indolência, a maledicência e a suspeita sem fundamento — e da graças ao Senhor.

15) Tendo já tratado bastante disso, vou dar-te um outro conselho: evita, o quanto possível, as relações que não te trazem proveito algum com os que só pensam em si, mesmo se são ortodoxos e, com maior razão, se são hereges. Seus cabelos brancos e suas rugas fazem supor experiência, mas sua hipocrisia é perigosa. Tens, sim, muita nobreza de caráter para que eles te prejudiquem, mas, zombando deles, corres o risco de te tornares insolente e orgulhoso, e isto, sim, te prejudicaria.

Volta-te, ao contrario, para a luz e procura encontrar santos homens e santas mulheres, nos quais poderás, tão claramente como num livro, ler teu próprio coração. Comparando-te a eles, medirás tua energia ou tua negligencia e, se sentes desanimo ou falta de coragem, serás reconfortado pelo brilho das faces sob os cabelos brancos, o porte, a modéstia das maneiras, a moderação no falar e a graça dos pensamentos. “Porque a veste de um homem, seu modo de andar e seu riso revelam o que ele é”, diz a Sabedoria (Si 19,30).

Começarei, pois, estas narrações sem deixar ninguém ignorado, quer tenha vivido na cidade, no campo ou no deserto. Pois o que importa não é o lugar onde esses homens viveram e sim a perfeição de sua vida.