É impressionante que tal crítica tenha sido notadamente dirigida ao cristianismo na época do romantismo, quando a figura de Cristo exercia em muitos pensadores um fascínio todo particular. No jovem Hegel, a crítica o leva ao fascínio. O que é reprochado a Cristo é o opor constantemente o invisível ao visível, de modo que a realidade é quebrada e, prisioneiros dessa oposição, os indivíduos não podem senão levar uma vida dilacerada. Por um lado, Cristo pretende fundar-se exclusivamente sobre o primeiro desses termos, o amor puro e infinito de Deus, rejeitando tudo o que não seja ele, tudo o que tenha aspecto do mundo. É preciso, por conseguinte, renunciar a muitas coisas, à relação dos indivíduos com a sociedade onde eles vivem, à sua relação com a organização política – o Estado judeu –, mas também às múltiplas relações que eles mantêm entre si na atividade social, a todas as manifestações exteriores da vida. “Um grande número de relações efetivas, de relações vivas se encontraram perdidas.”1 O destino do cristianismo é antes de tudo o de toda forma histórica que pretenda desenvolver-se desconhecendo ou rejeitando uma parte essencial da realidade e que, tropeçando sem cessar nesta, não pode, no conflito permanente, mais que tomar a via do declínio e do desaparecimento. Esse destino trágico daquele que já não tem sua afirmação de si mesmo senão de sua oposição ao mundo, isto é, à realidade – daquele que não é mais que o “Oposto ao mundo”-, é o de Cristo. O jovem Hegel o pensa e o descreve como se segue: “Pois o que ele via em Deus eram seus próprios choques contínuos contra o mundo, sua fuga diante do mundo; ele não tinha necessidade senão do Ser oposto ao mundo, no qual sua própria oposição ao mundo se encontrava fundada”.
Mas há mais. Com o cristianismo, a realidade não está apenas cindida entre o “aqui embaixo” e o “além”. Se este que se opõe ao mundo vem inexoravelmente quebrar-se contra ele e, nesse combate sempre perdido, deve confessar sua impotência, é porque este mundo mau é a realidade, não uma parte desta, mas a única realidade efetiva, enquanto aquela que se lhe opõe e em nome da qual se crê poder condená-lo não é mais que um Céu vazio. O que Cristo ensina é a pureza do coração, é um amor interior sem limites. Mas o que é um amor que não se “realiza”, que não age? Realizar-se, agir não é enfrentar o mundo, não mantendo com ele uma oposição exterior e formal, mas transformando-o? Transformar o mundo, fazer advir nele uma modificação real, é reconhecer suas leis, utilizá-las, produzir graças a elas uma mudança que se apresenta sempre em forma de determinação objetiva, como esta realidade efetiva particular que resulta a cada vez de uma ação ela mesma particular e que todo o mundo pode ver, que está aí para todos e para cada um. A vida “não cumprida”, o jovem Hegel opõe a “vida cumprida”, aquela cujo cumprimento consiste nesta multiplicidade de atividades concretas que compõem a trama infinitamente rica e variada do mundo dos homens. Fora dessa riqueza e dessa variedade objetiva, não há senão uma subjetividade vazia. Mas a objetividade era para Cristo “o maior inimigo”.2 É por isso que a recusa da determinação objetiva tinha de levar o cristianismo a um “amorfismo” privado de conteúdo. Desviando-se do mundo a exemplo de Cristo, o discípulo não perde somente as ricas formas concretas da vida. O que lhe é proposto, em contrapartida dessa “renúncia”, não é literalmente nada senão esta representação absolutamente vazia de um Céu imaginário.
É preciso fazer observar a repercussão de tal crítica? O conjunto do sistema hegeliano a reproduz constantemente em si de diversas formas, a mais célebre das quais é sem dúvida a da “bela alma”. Incapaz de sair de si, de enfrentar o mundo e de agir verdadeiramente, a [332] bela alma não pode sertão recolher-se nesta pureza interior e, “nesta pureza transparente, desvanecer como uma fumaça sem forma que se dissolve no ar”.3 Tal crítica não se encontra somente em numerosos contemporâneos de Hegel, mas vai inspirar uma das posições mais incisivas do marxismo. Já não se trata de sonhar com alguma perfeição interior que repouse sobre si, e nem sequer de projetar o quadro de um sistema harmonioso de ações em que essa perfeição seja possível. Nada se pode fazer no homem, nenhuma mudança suscetível de afetar seu ser real, que não pressuponha como sua condição uma mudança real do próprio mundo – mundo cuja verdadeira essência não é antes de tudo natural, mas social. Esta é uma proposição frequentemente citada pelo jovem Marx: “Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de modo diferente; o que importa é transformá-lo” (Nona Tese sobre Feuerbach).
Pelo viés do marxismo, a crítica cuja origem acabamos de lembrar rompeu o círculo estreito da filosofia para se tornar um dos lugares-comuns da ideologia moderna. No que concerne ao problema que nos ocupa, esta apresenta os seguintes aspectos: a rejeição de todo “além”, definitivamente assimilado a um imaginário ilusório; uma atenção e um interesse votados exclusivamente a este mundo, cujo conhecimento é o único que importa. Ora, este interesse não é somente teórico, mas prático. Se as ilusões metafísicas devem ser afastadas e o conhecimento tornado científico deve voltar-se para o universo objetivo, é precisamente porque já não se trata de assegurar a salvação no “Céu”, mas de transformar o mundo. Os ideais científicos e éticos se deslocam ao mesmo tempo. As mentalidades não fazem senão exprimir esse deslocamento. Se no século XX, num país como a França, grande número de cristãos perdeu a fé, é porque esta fé era uma fé no “além”. O que devia tomar seu lugar, naturalmente, era a transformação efetiva deste mundo, a adesão às forças que tomavam esta via. Os ideais éticos do cristianismo – o amor aos outros, a solidariedade, a generosidade, a justiça, etc. – [333] podiam ser conservados, e na verdade o foram: tratava-se precisamente de realizá-los. O que era censurado ao cristianismo, afinal, não era pois sua moral, mas seu moralismo. Não eram seus ideais, era, projetando-os para um céu vazio, reduzi-los a votos piedosos, em vez de fazê-los entrar dia após dia, através de lutas e contradições, na difícil história dos homens. Gerações inteiras repetiram esse catecismo. Mas a crítica ultrapassa nosso tempo. Porque se enraiza no coração das coisas, ela reencontra temas antigos: “É preciso cultivar nosso jardim”, “Não aspires, ó minha alma, à imortalidade, mas esgota o poder de viver”, etc.
Reportadas às intuições fundadoras do cristianismo, que valem essas críticas? De que “evidência” podem elas valer-se? Para voltar antes de tudo ao jovem Hegel, é completamente inexato pretender que o cristianismo tenha cindido a realidade nos dois reinos do visível e do invisível e, ao mesmo tempo, tenha mergulhado a existência humana no dilaceramento. Tais afirmações, com as consequências “críticas” que acabamos de lembrar, testemunham somente uma incompreensão absoluta com respeito ao “espírito do cristianismo” e à tese decisiva que o sustenta. Esta tese: só existe uma realidade, única, a da Vida. É precisamente porque a vida é invisível que a realidade é invisível. Invisível, portanto, não um domínio particular desta, uma forma particular de vida, mas toda vida possível, toda realidade concebível. Invisível não no sentido desse lugar imaginário e vazio que se diz ser o Céu. Invisível no sentido do que – como a fome, o frio, o sofrimento, o prazer, a angústia, o tédio, a dor, a embriaguez – se experimenta a si mesmo invencivelmente, fora do mundo, independentemente de todo ver. E que, experimentando-se a si mesmo em seu estreitamente invencível, é incontestável. Seria vivente e, assim, “real” ainda que não houvesse nada mais, ainda que não houvesse nenhum mundo (segundo o próprio argumento invencível de Descartes). Não se trata, portanto, de oposição entre o visível e o invisível, entre duas formas de realidade. No cristianismo nada se opõe à realidade, não há nada além da vida. (Michel Henry MHSV)