Romano Guardini — Os que matam o corpo (Lucas XII, 4-12)
E ainda: «Digo-vos a vós, meus amigos: não temais os que matam o corpo e, depois disso, mais não têm que fazer. Mostrar-vos-ei a quem deveis temer: Temei Aquele que, depois de matar, tem poder para lançar na Geena. Sim, vos digo Eu, temei a Esse. Não se vendem cinco passarinhos por dois asses? E nem um deles está esquecido diante de Deus. Mas até os cabelos da cabeça vos estão contados. Não temais: tendes mais valor do que muitos passarinhos. Eu vos digo; todo aquele que se tiver declarado por Mim diante dos homens, também o Filho do Homem Se há-de declarar por ele diante dos anjos de Deus» (Luc, 12, 4-8).
Nestas palavras acontece o mesmo que nas precedentes. Jesus chama os seus para mais perto de Si. Faz-lhes compreender o que está em questão: Ele próprio, o Enviado de Deus que é preciso reconhecer ou recusar; a sua mensagem e a sua vontade enquanto mensagem e vontade do Pai. «Reconheceis-Me!s>. Jesus faz-lhes ao mesmo tempo compreender que tudo o que se opõe a isto não tem essencialmente qualquer valor quando aferido pelo padrão último, seja qual for o significado que lhe atribui o sentir humano imediato. A sua vida será ameaçada, serão expulsos da ordem social, serão privados do seu pão; serão até mortos. Mas na medida em que houverem compreendido que Cristo é o essencial e que tiverem unido a sua vontade à; d’Ele, tudo o mais lhes aparecerá secundário. Estarão armados para o combate e a sua inferioridade encontrará alicerces na indestrutibilidade eterna: «Não temei».
Doutores da lei e fariseus, autoridades e poderes serão os seus adversários. Julgarão estar perdidos — quando estarão na verdade em segurança. Onde? No que Jesus trouxe de mais profundo, na Providência. Vimos já o que deve entender-se por Providência. Não é a ordem da natureza, que existe por si própria, mas aquela que advém de Deus aos homens que n’Ele acreditam. Na medida em que o homem reconhece Deus como Pai, se Lhe entrega e não cura senão do seu Reino, uma nova ordenação da existência se produzirá, na qual «tudo concorre em bem» (Rom., 8, 28). Realiza a vontade de Deus quem se firma em Jesus. Palavra extraordinária: Ele próprio é a condição necessária para o advento da ordem providencial! Quem O segue saberá «que até os cabelos da cabeça estão contados», e que não têm motivo para temerem. Os discípulos não devem recear a perseguição, pois serão protegidos. Não devem sequer ter medo se tiverem de morrer, e saberem que o seu eu essencial não será atingido. Quem os matar, matará apenas o seu corpo; não podem prejudicar a sua alma, pois ela está, pela fé em Jesus, protegida.
O momento decisivo chegará também para a alma — saber-se se ela deve morrer ou viver: perante Deus, no Juízo. Deus pode lançá-la na morte eterna. E é só isto que devem recear. Mas se reconhecerem Jesus, estarão vivos perante Deus e permanecerão na vida eterna. Mais: a revelação da morte e da vida eterna, o juízo supremo, está nas mãos deste Jesus que neste momento lhes fala. Ele, que partilha agora com eles o perigo, que é escorraçado pelos poderosos e pelos sabedores, que pode fazer pôr fora da lei aqueles que O reconhecem — é Ele próprio que decidirá se um homem é salvo ou condenado para sempre. A opção por Jesus está submetida às dificuldades em que ocorre, mas funda a eternidade.
Extraordinária a consciência que por aí se manifesta! É a consciência do Filho do Homem que é o Filho de Deus. A consciência d’Aquele que foi rejeitado pelas autoridades humanas e que no entanto é o Verbo vivo do Pai. Consciência do sacrificado, cujo fim se aproxima e que contudo reside na verdade do que dá sentido ao mundo!