Romano Guardini — Não a paz, mas a espada (Luc XII, 51-53)
Mas alguém poderia haver dito: Senhor, disseste que trazias a paz! Quando enviaste os teus discípulos em missão, ensinaste-lhes a dizer: «Que a paz esteja nesta casa!» (Luc, 10, 5). Como podes agora colocar o homem em oposição com tudo o que é tudo o que tem? Ele teria respondido: «Julgais que Eu vim estabelecer a paz na Terra? Não, vos digo Eu, foi antes a divisão. Haverá efetivamente a partir de agora cinco divididos numa só casa: três contra dois e dois contra três; dividir-se-ão o pai contra o filho e o filho contra o pai, a mãe contra a filha e a filha contra a mãe, a sogra contra a nora e a nora contra a sogra» (Luc, 12, 51-53).
A paz que trará está atrás desta luta. De início, há uma inquietação que desperta. Pensando em tudo isto, sentimos que se introduz na nossa vida e que vem de Jesus. Não que este mundo dilacerado seja muito tranqüilo, longe disso — mas há nele «paz»; na medida em que ele pensa bastar-se a si mesmo. As contradições e as tensões de que sofre circunscrevem-se dentro da unidade que, enquanto um todo, forma: e que consiste em querer ser mundo e apenas mundo. É aqui que Jesus introduz a sua luta; e até nos laços mais naturais deste mundo. Tudo o que parece humanamente evidente é posto por Ele em questão. As pretensões dos que nos estão próximos tornam-se discutíveis. Desde que um homem deixa a inquietação de Cristo entrar no seu coração, torna-se incompreensível para os outros e objeto de escândalo.
Mas que provoca o combate? O que trará a «espada»? «É semelhante o Reino dos Céus a um tesouro escondido num campo, que um homem achou e tornou a esconder, indo depois, na sua alegria, vender tudo quanto tinha e comprar este campo. É ainda semelhante o Reino dos Céus a um negociante, que andava em busca de boas pérolas. Tendo encontrado uma pérola de grande valor, vendeu tudo quanto tinha e comprou-a» (Mat., 13, 44-46).
O homem no campo tem o seu mundo: o seu domínio, a sua charrua, a sua colheita, a sua casa e tudo o que nela vive. Tudo isso segue o seu curso normal, aquieta-o dentro de si, dá-lhe paz. E eis que depara com um pote cheio de moedas de ouro: esta outra realidade entra no seu mundo e transforma-o. A sua preciosidade confunde tudo quanto até aí era evidente, e sente-se constrangido a dar «tudo» para adquirir o que aí brilhou diante dos seus olhos… O negociante tem o seu comércio, regulado pela compra e pela venda, pelo interesse e pela honestidade, pelo desejo de guardar o que possui e de o fazer frutificar. Vê então a pérola cujo preço extraordinário lança por terra todos os seus hábitos de economia. O que possui parece-lhe insignificante, e desfaz-se de «tudo» para comprar a pérola.
O que provoca a luta não é um preceito, mas o fato de se tornar visível uma realidade superior ao mundo, de um preço maior do que todos quantos eram até então conhecidos. E uma superioridade e um preço maiores não no sentido de um mero «mais» — como se o que é novo se limitasse a valer mais numa mesma escala, e que o que até então existia no mundo fosse transformado em algo mais elevado —, mas superior a «tudo». A direção a partir da qual «pérola» e «tesouro» provocam um abalo é oposta a todas as ordenações de valores próprias ao mundo. É superior à cabana e ao palácio, às relações efêmeras entre os homens e ao grande amor, ao trabalho medíocre e à obra criadora. O fato de a preciosidade do «inteiramente outro» brilhar, o fato do apelo da excelência do Reino de Deus ser sentido — é isso que traz a guerra.
As passagens aqui comentadas aplicam-se em primeiro lugar aos instantes que descrevem. Subsiste ainda a possibilidade de o Reino de Deus surgir na sua plenitude profética. O convite a que o «imitem» tem assim de começo um sentido inteiramente especial: Jesus quer conduzir os homens Consigo para a nova criação que vai acontecer. E começa por convidar todos aqueles «que têm ouvidos para ouvir». Por isso lhes ensina a desembaraçarem-se de tudo quanto os poderia tolher: coisas, relações humanas, cadeias do próprio eu, para que estejam livres e disponíveis para o que se deve seguir.