Gregório de Nissa — CRIAÇÃO E TEMPO
Excertos da tese de Maria Cândida da Costa Reis Monteiro Pacheco, S. Gregório de Nissa — Criação e Tempo
TEMPO E COSMO
O kosmos — a akolouthia de progressão e finalidade — ritmos cíclicos e dimensão vetorial — o tempo cósmico.
Dizer que o mundo é no tempo significa, para S. Gregório que não tirou de si a sua própria origem, tendo um princípio e um fim e que, não possuindo totalmente o seu ser, conhecerá a alteração e o movimento, no devir. Então, o momento presente, passageiro e efêmero, será simultaneamente, sinal negativo e positivo: negativo, na medida em que traduz a finitude e a limitação da realidade que o experimenta; positivo, porque produtor duma gênese e possibilidade de aparecimento de seres novos.
Partindo S. Gregório deste conceito ôntico do tempo, facilmente se compreende que, nele se não encontram as especulações cosmológicas suscitadas por esta problemática entre os filósofos gregos. Debalde se buscam na sua obra as definições tradicionais do tempo ritmado pelas revoluções celestes, número do movimento segundo o antes e o depois (Aristóteles), intervalo acompanhando o movimento do mundo. Se o tempo se define como estrutura essencialmente metafísica, é independente de qualquer determinação intelectual e, até, como veremos, da vida da alma. Não obstante, é inegável que S. Gregório tem um conceito cósmico do tempo. Em que sentido poderemos entendê-lo?
O mundo foi constituído por criação, segundo uma akolouthia orgânica, que define uma ordem irreversível e um tempo vectorial. A descrição da criação dos seis dias desenha essa ordem correspondente a uma complexidade crescente e a um adensamento temporal: a realidade do segundo dia é diversa e menos rica que a do quarto ou do sexto dia. Quer dizer que, nesse espaço temporal, surgiram realmente seres novos, numa lenta ascensão da matéria à vida e desta ao pensamento, no realizar das formas e potencialidades criadas simultaneamente en arche (v. Bereshith).
Essa akolouthia tem um sentido de progressão e finalidade. Se é certo que, no instante indivisível do ato criador, foi suscitada, simultaneamente, a existência dos seres, na ordem histórica eles surgiram num encadeamento de causas, do imperfeito ao perfeito, reflexo da arte e da sabedoria (technike) divinas.
O adensamento do tempo é o desenvolvimento do ato criador. Como tal, apenas afeta as realidades criadas, interligadas pelas relações do antes e depois, que são as suas afecções próprias. Essa distensão temporal não pode encontrar-se em Deus, para quem todas as coisas são igualmente presentes, numa totalidade englobante1. A lei da sucessão define a criatura. Assim, o mundo originado pelo ato criador, traduzirá no seu evoluir, segundo movimentos e ritmos próprios, essa mesma lei.
A visão dum universo, constituindo-se no tempo, enquadra-se no esforço de valorização do sensível efectuado pelo estoicismo, reagindo contra a tonalidade predominante (embora não única) do platonismo2 e se o tempo, na sua definição célebre, surge como imagem da eternidade, é menos pela mobilidade em si, do que pelo seu ritmar numérico, que quase a anula3. Aristóteles retém, igualmente, o aspecto numérico do tempo e não distingue, de forma explícita, entre a representação do tempo e o modo como ela se constituiu, definindo, sobretudo, um tempo matemático (Aristóteles). Longamente, como que ilude o problema metafísico do ser no tempo e, quando aprofunda a questão, restabelece a analogia entre tempo e espaço. Distingue, no segundo, uma necessária finitude, enquanto o primeiro é, por essência infinito, sem ter tido começo. Descobre, no entanto, que a representação temporal pode apenas aplicar-se aos entes, cujo ser é devir4.
Na definição apresentada por Crisipo, todas as coisas se movem e existem no tempo, sem exceptuar qualquer ser como fazia Aristóteles. Os estoicos não aceitam a inspiração matemática do platonismo e do pitagorismo. Nessa linha, só o presente existe e é atual, enquanto o tempo infinito (aion) é um incorporal. Dá-se, por assim dizer, uma inversão da posição platônica: é o presente, que absorve o passado e o futuro, surgindo com a mesma consistência, que Platão e Aristóteles tinham atribuído à eternidade. A instabilidade e a inconsistência do presente temporal criticada pelos antigos, na sequência de Heraclito, pertence, segundo os estoicos, à consciência animal; no homem o instante é totalizante.
A noção estoica do presente e a sua valorização parecem indicar uma recuperação do valor do sensível, que surge não como realidade menor, mas única e totalizante. No entanto, será útil recordar que essa realidade se define à escala cósmica. A lei da sucessão aparece, assim, atenuada numa simultaneidade essencial, acentuada ainda pela noção de palingenesias periódicas.
Ora, em S. Gregorio5, encontramos os dados destes vários sistemas aglutinados numa formulação nova. É evidente que o tempo é realidade segunda, se o confrontarmos com a eternidade, e que a sucessão temporal é imperfeita e inconsistente, se a compararmos com a plenitude do presente sempiterno. Mas não é menos verdade que o diastema define essencialmente uma realidade nova (a da criatura) e uma estrutura ôntica correlativa que, como tal, é uma perfeição na sua ordem. Se na eternidade tudo é dado e tudo é presente, o ser temporal definir-seá pelo projeto, realizando-se à medida que existe e muda. Daí que o nosso autor sublinhe fortemente os aspectos positivos do fluir temporal como possibilidade e gênese, lei inelutável, é certo, mas que produz os seus frutos e tem um sentido na harmonia do universo.
Nessa perspectiva, o círculo só poderá surgir como símbolo de finitude, já que o movimento linear, tendendo para o infinito, traduzirá a plenitude dum plano que, sucedendo progressivamente no devir histórico, é presente desde o ato criador. Cada ser tem, pois, um circuito único e irreversível e há apenas uma história do mundo, que não admite nem possibilita repetições.
Essa akolouthia subjacente à descrição da criação dos seis dias é claramente visível em S. Gregório, sobretudo em In Hexaemeron. Há uma preocupação toda científica, como evidencia Jean Daniélou, em descrever o desenvolvimento dos seres criados em virtude dum dinamismo interno.
Por outro lado, como vimos, constituído o mundo na diversificação dos seus seres, esse dinamismo continua, patenteando-se nos ciclos biológicos e no suceder das gerações.
A sucessão exprime, pois, uma finalidade que se realiza progressivamente, como necessidade intrínseca duma natureza criada. O encadeamento das coisas, segundo a lei implacável da vida e da morte, tem sempre, assim, o sentido duma preparação e, ao ser meditada, revela-se como reflexo da sabedoria divina.
Outra ideia vem sublinhar esta dimensão linear do tempo cósmico. Numa perspectiva bíblica, já fortemente posta em relevo por Santo Ireneu6, o tempo do mundo é também e, sobretudo, o tempo da salvação, pois a matéria e o sensível existem em função da humanidade, permitindo o realizar da história sobrenatural.
Este ponto de vista é nuclear em S. Gregório, definindo-se com toda a clareza em De hominis opificio. A constituição sucessiva dos seres materiais, vegetais e animais está, em última análise, condicionada pela realização efectiva do pleroma da humanidade. Deus estabelece o tempo necessário para esse fim e, assim, é a vinda dos homens no seu número fixo que regula a temporalidade e a fará cessar.
O tempo cósmico, no suceder dos anos, surge primordialmente, como irreversível: nele se insere o tempo humano e, por este, uma dimensão mística e escatológica. Entre a temporalidade cósmica e a história da salvação há uma relação dupla: por um lado, o tempo cósmico é condição da inserção do homem na história; por outro, é a constituição do pleroma da humanidade, que o limita. Daqui resulta um nítido antropocentrismo, de acordo, aliás, com a concepção gregoriana da situação do homem no mundo: como methorios, representa o último grau de aperfeiçoamento cósmico, pela ligação do espiritual ao sensível.
Na obra de S. Gregório, porém, o tempo cósmico não se caracteriza, apenas, por uma dimensão linear, mas também por uma dimensão cíclica. Define-se, então, como profundamente limitado, como real imobilidade sob a aparência de mobilidade, e é semelhante à condição biológica dos estoicos.
A cosmologia gregoriana integrando-se, como vimos, num contexto estoico, baseia-se numa perpétua transformação dos elementos uns nos outros, numa espécie de movimento circular, que tem conexo um tempo cíclico. A vida pode definir-se pela imagem dos animais presos a uma mó, constituída alternadamente pela fome e saciedade, sono e vigília, vazio e plenitude. Numerosos textos da obra do autor podem aduzir-se neste sentido. Partem, porém, normalmente, duma perspectiva ética, mostrando como o espírito não pode saciar-se com uma indefinida repetição cósmica. Tal concepção parece ter implícita uma contínua repetição, um não progresso.
Como conciliar esta noção dum tempo cósmico cíclico com a sua dimensão vectorial expressa numa linha evolutiva, desde um começo do mundo?
Em relação ao movimento, tinha-se-nos posto um problema semelhante e o movimento espiralado, síntese do circular e vetorial, definira-se como a solução proposta pelo Bispo de Nissa. Com o tempo, passa-se algo de semelhante.
A gênese dum novo elemento produzida pela alteração implica tempo, como a alternância dos ciclos biológicos, definida por estádios sucessivos e irreversíveis (hodos kai akolouthia), únicos para cada ser e que terminam com a morte, não se repetindo, portanto. O ritmo constante do suceder das gerações traduz progresso e implica um adensamento temporal, encarnando através de épocas sucessivas e diversas.
A noção de ciclo fechado, expressa por um eterno retorno, não tem cabimento aqui. Se, para cada existência criada, individualmente, o circuito parece traçar-se num plano biológico, do não-ser ao não-ser, repare-se que, no conjunto, o traçado de cada existência se prolonga através das gerações, numa continuidade totalizante, semelhante ao somatório dos pontos constituintes duma linha. Mesmo e já a nível cósmico, o tempo parte da eternidade e desemboca na eternidade. Na medida em que é caminho e distensão entre um começo e fim, revela-se numa dialética ascensional, verdadeiramente numa tensão. Se é uma saída parcial da eternidade, não pode considerar-se nunca uma alienação, na medida em que a implica sempre e se referencia a ela onticamente.
Por isso discordamos de Gaïth quando afirma: «Le temps se présente dans ces textes comme l’échec de la première tentative divine, et donc, de l’éternité». Esta interpretação do pensamento gregoriano só é possível referenciada à teoria da dupla criação, entendendo-a como um plano corretivo, secundário, dos primitivos pensamentos de Deus. Vimos, no entanto, que esta teoria foi abandonada por S. Gregorio. De fato, o seu antropomorfismo não se coaduna com as intuições fundamentais do nosso autor e contraria a sua concepção dinâmica dum mundo constituindo-se no tempo, evoluindo, progredindo, na preparação do pleroma da humanidade.
Ainda nesta perspectiva, Gaïth pode representar o tempo esquematicamente como uma curva «vaguement parabolique (…) une sorte d’effondrement». Mas este conceito contraria, como é evidente, a conexão dos movimentos cósmicos traduzidos pelo spcóç e expressos pelo movimento espiralado. Este corresponde efectivamente à junção dos ritmos da matéria e do espírito que, partindo do não-ser tendem para a plenitude de ser. Implica um progresso, num suceder que é sempre novo, embora sob uma aparente repetição.
Cf. Eun., GNO, I, 136, 13-27; PG, XLV, 368 A-368 B. É interessante comparar a forma como Santo Anselmo, «De concordia Praescientiae Dei cum libero arbitrio», in PL, CLVIII, 513, Santo Agostinho, De Civitate Dei, XI, 21 e S. Tomás, De veritate, III, 3, glosam, esta mesma ideia, clarificando-a. ↩
Escreve V. GOLDSCHMIDT, Le système stoïcien et l’idée du temps (Paris, 1953), 5-6; «Mais plus particulièrement le problème du temps a dû former comme le noeud de la réfléxion stoïcienne qui vise, contre les lourdes autorités de Platon et d’Aristote, à rétablir dans sa réalité et dans sa dignité, le concret, le sensible, disqualifié comme sujet à la gênération et à la corruption, c’est-à-dire, en un mot, comme l’être dans le temps. Une telle tentative exigeait, et cela à tous les niveaux du système, non seulement une revalorisation, mais une totale refonte de l’idée même du temps.»FOOTNOET/. Para Platão, a eternidade é a condição própria dos seres inteligíveis{FOOTNTOTE()/}PLATÃO, Timeu, 37 d. ↩
PLATÃO, Timeu, 38 a. A este respeito escreve J. MOREAU, Plotin ou la gloire de la philosophie antique, 30-1: «Cette formule célèbre est ordinairement mal comprise: on l’entend le plus souvent comme si la succession temporelle était un succédané de l’éternité immuable; mais la succession n’est pas, en elle-même, une imitation de l’éternité: elle en est, au contraire, la négation, la dispersion. Si le temps peut être regardé comme une image de l’éternité, c’est dans la mesure où la succession est soumise à des retours périodiques, ou la mobilité est réglée par le nombre.» ↩
Sobre o assunto ver J. MOREAU, L’espace et le temps selon Aristote (Pádua, 1965). ↩
Só dois autores se debruçam, especificamente, sobre a temática do tempo em S. Gregório: J. F. CALLAHAN, «Gregory of Nyssa and the psychological view of time», in Atti del XII Congresso Internazionale di Filosofia (Florença, 1960) e J. DANIÉLOU, L’être et le temps chez Grégoire de Nysse. ↩
Santo Ireneu, «Adversus Haereses», in PG, VII, 953 B. S. Tomás afirmará, no mesmo sentido, que Deus realizará o número dos eleitos, através do movimento das criaturas corpóreas (De Potentia, XIII, 10). ↩