Gregorio de Nissa Tematica da Criação

Maria Candida Monteiro Pacheco — S. Gregório de Nissa

Muitas notas foram retiradas para facilitar a leitura na Internet
A temática da criação

A temática da criaçãoDeus e a obra criada: unidade-multiplicidade, espírito-matéria, eternidade-tempo — Transcendência e imanência — a criação en arche e a criação dos seis dias — o conceito de criação virtual.

Na sua reflexão antropológica, S. Gregório de Nissa parece encontrar a cada passo a manifestação profunda do mistério do ser. Os grandes temas gregos do uno e do múltiplo, do ser e do devir, da eternidade e do tempo, manifestam-se a nível cosmológico e interiorizam-se numa antropologia.

No pensamento do autor é clara a integração do homem no mundo (NA: A palavra mundo tem, neste capítulo, o sentido da criação visível correspondente ao uso do termo kosmos em S. Gregório). Enraizado no concreto, definido ontologicamente também pela sua realidade material, não surge desligado do sensível ou nele irrompendo por uma queda ou uma degradação, mas antes como resultado do aperfeiçoamento da matéria, destinado a dominar o mundo e a unificá-lo, ocupando pela sua razão, e, sobretudo, pela sua liberdade, uma posição única, porque confiante com a natureza do Criador.

Assim, em S. Gregório de Nissa, a sensibilidade à beleza, à harmonia cósmica, e a acentuação do valor do sensível assumem uma relevância particular, a refletir a sua mentalidade grega. O estudo do mundo é o objetivo fundamental de In Hexaëmeron e reaparece com muita frequência na obra do Bispo de Nissa, sempre em relação íntima com a problemática espiritual. Este fato confere um cunho muito próprio ao seu pensamento, impregnando-o de realismo e de objetividade. Desta forma, o ideal que propõe não é mera abstração teórica, mas fundamenta-se num estudo profundo da situação real do homem, a começar pelas suas raízes cósmicas.

Numa visão, aliás grandiosa, o homem é considerado no conjunto da obra criada: ele seria incompreensível sem o mundo, mas o mundo sem o homem estaria incompleto, pela ausência duma presença espiritual.

A antropologia gregoriana aborda destarte uma das grandes problemáticas filosóficas de sempre — as relações homem-mundo —, evidenciando a ambiguidade e a polivalência de alguns binômios que nela estão implícitos: microcosmo-macrocosmo, espírito-matéria, vida-morte, inefabilidade-racionalidade, dinamismo-imobilidade. Por outro lado, a dicotomia homem-mundo é referenciada sempre, na sua contingência recíproca, ao ontos on — terceiro termo que fundamenta e explicita a insuficiência ontológica dos outros dois.

A articulação estrutural do homem e do mundo faz-se através do corpo, no qual se encontram os mesmos elementos fundamentais, sendo por isso verdadeiramente um microcosmo1. Mas o homem não é redutível ao sensível. A sua possibilidade de julgar2 e de agir livremente implica um distanciamento da totalidade englobante que o integra e que não pode, por si só, explicá-lo, pois é ultrapassada por ele. Por isso, Gregório, embora aceite, em certo sentido, a noção de microcosmo, não deixa de a criticar também3.

A relação homem-mundo é, para o nosso autor, um ponto de partida. Seria, por esse motivo, impossível abordar a sua antropologia sem nos debruçarmos sobre a sua noção de mundo, integrando-a numa temática mais vasta: a dicotomia uno-múltiplo, a que corresponde o tema bíblico da criação.

NOTAS:


  1. LAVELLE, Du Temps et de l’Éternité (Paris, 1945), 17, tal como S. Gregório, exigirá para a relação homem-mundo um horizonte absoluto: «Il n’y a plus aucune difficulté à dire que, comme mon corps fait partie du monde, l’opération qui fait être n’est elle-même qu’une participation à cette opération créatrice qui est l’origine commune d’elle-même et de tout ce qui peut être». 

  2. Escreve ALQUIÉ, «Conscience et Nature», in Existence et Nature (Paris, 1962), 37: «Ce qui signifie, révèle et prouve que la Nature n’est pas tout, c’est qu’il y a un être qui peut la mettre en question, la connaître, la deferir, la juger». 

  3. A noção de homem como microcosmo aparece-nos, por exemplo em Cf. Psalm., GNO, V, 30, 25-26; PG, XLIV, 440 C, enquanto em De hominis opificio S. Gregório atribui aos filósofos esse conceito, opondo-lhes a ideia cristã do homem como imagem do Criador e não apenas do universo. Cf. Op., PG, XLIV, 77 D-180 A.