Gregório de Nissa — Da Grande “Oração Catequética”
Excerto traduzido por C. Folch Gomes
DA GRANDE “ORAÇÃO CATEQUÉTICA”
(Caps. 14, 15, 29 e 30; P.G. 45, 45ss)
Por que motivo, pergunta-se, Deus se humilhou a ponto de deixar a fé desconcertada ante o fato de que ele, Ser incompreensível pela mente e inexprimível pelas palavras — pois transcende toda conceituação e capacidade — tenha vindo imiscuir-se no invólucro abjeto e vil da natureza humana, fazendo que suas obras sublimes e celestes se afigurassem aviltadas por tal mistura?
Não nos falta absolutamente a resposta que convém a Deus. Desejas saber o motivo pele qual Deus nasceu entre os homens? Se abstraísses da vida os benefícios que recebeste de Deus, não poderias certamente indicar as coisas através das quais reconheces a Deus. Reconhecemos o Benfeitor através dos benefícios que recebemos. Observando o que acontece avaliamos a natureza daquele que atua. Se portanto o indício e a manifestação própria da divina natureza é sua benevolência para com os homens, aí tens a resposta desejada, o motivo por que Deus veio aos homens.
Nossa natureza estava afligida pela enfermidade e precisava de um médico. O homem decaído precisava de alguém que o reerguesse. Morto, tinha necessidade de quem o vivificasse. Era preciso que fosse reconduzido ao bom caminho pois dele se apartara. Invocava a luz o prisioneiro das trevas. Buscava um redentor o cativo, o agrilhoado, o escravo. Serão acaso fúteis e indignas estas razões, de levarem Deus a descer à humanidade, tanto afligida pela infelicidade e pela miséria?
Mas, dir-se-á, o homem poderia ser salvo, permanecendo Deus na impassibilidade. Pois aquele que tudo criou pelo poder e aceno de sua vontade, não poderia com a mesma divina autoridade reconduzir o homem ao estado inicial, se o quisesse, ao invés de percorrer um longo itinerário, assumindo a natureza humana, aderindo a esta vida por meio da geração, depois transitando as idades e enfim morrendo para chegar pela carne à meta da ressurreição? (Como se não fosse possível àquele que permanece na divina glória salvar o homem por um simples ato de império, mas devesse percorrer todo esse circuito).
Convém, portanto, opor a tais objeções a verdade de nossa doutrina para que nada prejudique a fé nos que procuram examinar o mistério.
Primeiramente consideremos o que é contrário à virtude. Certamente o contrário é o vício, e nada mais. Como as trevas são o contrário da luz e a morte o contrário da vida. Pois da mesma forma que entre as criaturas nada se opõe à luz eu à vida, senão o que se define propriamente de modo contrário, não portanto a pedra, a madeira, a água, o homem ou outra das coisas que existem, mas apenas as trevas e a morte; também nada se dirá contrário à virtude senão o que se possa definir como vício.
Se então disséssemos que Deus nasceu no vício, poderia ser nossa fé impugnada per um objetante: estaríamos afirmando algo de inconveniente à natureza divina. Não seria possível admitir que a própria Sabedoria em si, a Bondade, a Incorrupção ou outro qualquer neme sublime que se formule, se passe para seu contrário.
Sim, Deus é a verdadeira virtude, mas nenhuma natureza contraria a virtude a não ser o vício. Então, se ele não nasce no vício mas na natureza humana, que em si não é má, por que tal nascimento lhe seria inconveniente? A noção de virtude não é contrária a natureza do homem. As propriedades da essência humana tais como participar da razão e da inteligência, ser capaz da ciência, etc. não repugnam à noção de virtude.
Passando adiante, tentam os objetantes investir por outros lados contra o que dizemos. Assim se expressam: Se o fato (da Encarnação) é conveniente a Deus, por que adiou tanto esse benefício? Se desde o princípio houve o vício, por que não impediu que aumentasse a seguir?
Quanto a isto o pouco que temos para dizer é que o adiamento do benefício se deu por uma razão de sabedoria e providência referente à cura de nossa natureza. Quando em nossas doenças do corpo se forma uma secreção purulenta os médicos costumam esperar que atinja certo grau e venha à superfície para empregarem os remédios. Assim também o Médico do universo esperou que o mal do vício, uma vez contaminando a natureza humana, se exteriorizasse totalmente. Por isto não usou de sua terapia imediatamente depois da inveja e do fratricídio de Caim, pois ainda não se haviam manifestado os pecados do tempo de Noé, o gravíssimo mal dos habitantes de Sodoma, a luta dos egípcios contra Deus, a soberba dos assírios, as sevícias dos judeus contra os santos, o infanticídio cruel de Herodes e todos os outros crimes depois consignados na literatura e na história — pois muitas vezes e de muitos modos haveria de germinar a raiz do vício! Foi depois que este atingiu a culminância de suas manifestações produzidas pela ousadia dos homens, que veio o remédio destinado a curar toda a doença.
Se alguém insistir objetando e disser que mesmo após a divina terapia ainda continua a pecar a vida humana, apelarei para um exemplo simples e conhecido. A serpente, mesmo depois de receber o golpe mortal na cabeça, continua movimentando a cauda. . . da mesma forma o vício, atingido por ferimento mortal, persiste manifestando-se como que em restos de vida.
Mas e por que — dirão ainda — a graça de Deus não chega a todos os homens? Alguns se aproximam da fé mas muitos outros não. . . Será que Deus não quis conceder seu benefício a todos, de modo copioso, ou será que não o pôde? Uma e outra coisa seria indigna de Deus! Se a fé é um bem, por que não é dada a todos essa graça?
Ora, se esta objeção se fundasse nalguma asserção nossa de que a vontade divina desse a uns a vocação da fé, deixando outros privados dela, sem dúvida a objeção constituiria uma dificuldade contra o mistério. Mas como pode acusar a Deus pelo fato de o Verbo não obter senhorio sobre todos, se existe uma vocação oferecida a todos, a qual não faz discriminação de dignidade, de idade, de raça (e por isto mesmo nos primórdios da pregação ocorreu que, por inspiração divina, os ministros da palavra falaram repentinamente a língua de todos os povos, para ver-se que nenhum estava excluído dos bens da salvação)! Aquele que tinha livre poder em relação a todos, quis dar-nos a honra de deixar-nos alguma coisa em nosso poder, e esta é a livre opção do livre arbítrio, dono de seu pensamento. Eis por que há de se imputar a culpa aos que não vieram a fé, antes que àquele que os chamou ao consenso. Aliás, quando Pedro fez sua alocução diante de muitos judeus, e três mil aderiram à fé, não teve culpa de que os outros também presentes não houvessem crido. Não seria justo que o indivíduo que per própria vontade se apartou da fé, num memento de oferta comum da graça, imputasse a outro que não a si mesmo essa atitude.