Gregorio de Nissa — CRIAÇÃO E TEMPO
Excertos da tese de Maria Cândida da Costa Reis Monteiro Pacheco, S. Gregório de Nissa — Criação e Tempo
Eternidade e tempo
(a eternidade como plenitude de ser — criatura e temporalidade — o conceito de diastema)
Quando tentamos entender o pensamento de S. Gregório de Nissa sobre a temática da criação, o homem definiu-se, a partir de raízes cósmicas, como ser complexo, na unidade corpo-espírito, preparado por uma evolução lenta e gradual e destinado a uma missão de divinizador. À medida que os temas se encadeavam, encontrávamos, sempre, como acentuação fulcral, uma dialética do tempo.
De fato, ao longo da obra do Bispo de Nissa esta problemática nunca é abordada de modo específico. Se tentássemos isolá-la, apenas resultariam cortes transversais, desconexos e contraditórios, já que a teoria do tempo está em relação estreita com as teses maiores do pensamento gregoriano, todas lhe sendo solidárias.
A visão gregoriana da criação é acentuadamente temporal. O universo constituiu-se a partir de virtualidades primitivas que, atualizando-se progressivamente, originaram a multiplicidade dos seres. A história de cada ser cósmico desenha-se numa curva vagamente parabólica: nascimento, crescimento, maturidade, morte — ciclos aparentemente fechados que, sucedendo-se no ritmo de gerações, definem sempre, no seu conjunto, um movimento ascensional, prolongando o impulso criador. O dinamismo da matéria e do ser vivo abre-se ao do espírito. Este é permanência e tensão, parastasis e epektasis. A energeia das potencialidades primitivas, da semente, é a mesma do embrião, dos impulsos da vontade, do dinamismo da razão.
O dinamismo dos elementos em transmutação contínua, no kosmos, alterando-se a nível da stasis e kinesis, tem o seu paralelismo na tensão da vida racional e nas suas potencialidades, na atividade dos sentidos, na abertura dos conceitos. Ciclos materiais e ciclos biológicos; força da alma na modelação do seu corpo; potencialidade da imagem, que dinamicamente é semelhança e, na ordem do tempo, é tensão; virtualidades da proairesis… movimentos que se oferecem correspondendo a ritmos diversos… tempo a assumir livremente. Sempre uma dialética do realizado e completo na mente divina, equivalendo a um atualizar das forças cósmicas e humanas, iniciadas num tempo, para continuarem na eternidade em tensão, em Vida.
Será a meditação da temporalidade em si, transformada e humanizada, que lança verdadeira luz sobre todas as temáticas abordadas anteriormente. Assim, S. Gregório procura definir o tempo, em relação com a eternidade, entendê-lo a nível cósmico e compreender o que pode tornar-se nas mãos de cada homem. Para cada um, o tempo é, na realidade, escolha progressiva e individualizante.
Se a distinção Criador-criatura — básica no esquema intelectual de S. Gregorio — aponta, como vimos, a dependência ôntica dos tà onta em relação ao ontos on explicita-se, igualmente, em função duma dialética da eternidade e do tempo. O homem vive-a e consciencializa-a, experimentando em si mesmo uma distensão (diastema).
A teoria gregoriana do tempo assenta numa meditação primeira sobre a eternidade, desdobrando-se em duas temáticas paralelas: a definição do ser temporal, estruturando uma ontologia do criado e a busca do entendimento do homem, no seu dualismo de natureza inteligível criada e de realidade sensível. Desta perspectiva resultam três concepções temporais fundamentadas na eternidade: a ôntica, a cósmica e a psicológica, que analisaremos de seguida.
A plenitude de ser, que caracteriza a natureza incriada, traduz-se, diz-nos S. Gregório em Oratio catechetica, na ausência de qualquer diferença de mais ou menos, de antiguidade ou de novidade, requerendo, pois, logicamente, o seu caráter de eternidade.
Esta temática é abordada inúmeras vezes ao longo da sua obra e, sempre que tal acontece, aparecem-nos reunidos o imutável e o eterno, ressaltando como incidências fundamentais da nossa apreensão do divino. Nenhuma determinação — tempo, lugar, cor, forma, figura, peso, quantidade, extensão ou limitação pode atribuir-se à natureza eterna de Deus. É simples, pura, única, imutável, inalterável, sempre idêntica a si mesma; é eternamente o que é, «não florescendo temporariamente» e o seu princípio é coextensivo a toda a eternidade de vida, sendo superior a toda a adição ou diminuição pela sua perfeita suficiência.
A eternidade é, pois, uma concentração e uma permanência, subsistindo absolutamente em si mesma. Nada lhe falta. Não conhece o decurso temporal, não é medida pelos séculos, nela não se encontra passado ou futuro: tudo lhe é presente de forma indizível. Essa plenitude do ser não é, porém, qualquer coisa de estático ou de fixo: Deus é vida, para além de todo a distensão, vida ativa em si mesma, vida por essência.
Esta concepção de eternidade tem, nas suas implicações, como é evidente, fundamentos da filosofia grega. Para Platão e Plotino, a eternidade designava a condição dos seres inteligíveis, subtraídos à mudança. A sua plenitude não poderia excluir a vida e o pensamento1, mas traduzia a perfeita identidade consigo mesma2 e definia-se excluindo a sucessão, o antes e o depois, numa perpetuidade indivisa3.
S. Gregório transpõe para a natureza incriada as características que definiam ontologicamente o mundo inteligível platônico, acrescidas da unidade absoluta do primeiro princípio plotiniano. Por outro lado, na assimilação dos esquemas clássicos, a vida e o pensamento, que caracterizavam a plenitude do ser, são expressos, agora, pelas relações trinitárias. Porque é a própria existência, Deus possui-se plenamente em pensamento e em amor. As três pessoas divinas possuem o mesmo ser divino, cada uma segundo uma relação definida num ato de comunicação perfeita, sem princípio ou alteração.
A plenitude da eternidade implica não apenas a unidade, mas a Trindade divina, numa total estabilidade e na absoluta unidade de operação que é a Vida4. Este conceito é extremamente importante em S. Gregório. Deus é a Vida que Se conhece e Se ama como Pai, Filho e Espírito, e é esse mistério de Eternidade que se comunica à criatura, chamando-a à vida, na medida em que d’Ela participa. Todo o movimento do ser criado recebe a sua origem dessa participação e o seu dinamismo é, de si, ilimitado, dada a plenitude infinita da sua fonte.
A eternidade define a própria plenitude do ser divino, pois n’Ele não existe nem começo nem fim; exclui toda e qualquer possibilidade de sucessão, de movimento ou de devir; designa o Ser a quem nada falta e a quem tudo é presente.
Na tentativa de distinção da natureza criada e incriada, situa S. Gregório dialeticamente o tempo e a eternidade, numa perspectiva nítida, que afirma a radical transcendência do Ser divino. Nada de criado pode ter qualquer coisa de comum com a Vida divina, porque Ela não existe no tempo, mas é o tempo que vem d’Ela. A criatura é levada até ao seu próprio fim, através de intervalos temporais que a medem e a contêm, enquanto a Vida transcendente não conhece qualquer limite. A lei dos tà onta é, pois, a sucessão (a akolouthia), a ordem do antes e do depois, originada num princípio e encaminhando-se para um fim numa diastematike parastasis.
Sendo assim, a eternidade é a negação do tempo, apenas enquanto este traduz uma insuficiência ôntica, implicando necessariamente uma distensão, e originando o devir, condição do realizar dos seres temporais. Paralelamente, é a eternidade que fundamenta e origina o tempo: daí o sentido da totalidade temporal, da sua orientação, do encadeamento das causas, que se ordenam não por acaso ou fatalismo, mas por uma espécie de determinismo físico, que é obra da sabedoria divina.
O tempo não é, pois, apenas medida ou forma de apreensão: há nele uma certa realidade substancial, impedindo que possamos reduzi-lo a um ser de razão. Por outro lado, as suas conexões com o movimento e a instabilidade não permitem que lhe atribuamos uma subsistência própria, só adequada à eternidade.
No cerne da problemática temporal, reencontramos a dualidade característica do pensamento gregoriano, definindo dialeticamente as duas formas de ser: a natureza incriada e a natureza criada; a plenitude da essência, que a si mesma se possui, e a essência que é recebida, atualizando-se numa existência mutável; o omnipresente sem princípio, distensão ou fim e a dimensão temporal fragmentada, dividida e limitada.
Assim o tempo é uma realidade ôntica, a essência da criatura, traduzindo o seu modo intrínseco de ser, a sua passividade e insuficiência, tal como a eternidade é própria da natureza incriada, definindo a sua plenitude. Nesta perspectiva, nunca o nível da temporalidade poderá ser imitação da eternidade, como afirmava Platão5, ou ser originado numa queda da alma, afastamento duma vida supra-temporal, como para Plotino6. É uma forma nova de ser, correspondente não a uma alienação, mas à radical diferenciação do criado, necessária ao seu realizar e que será assumida pela eternidade, no fim dos séculos.
Se a criação surge, como vimos, por um ato livre da vontade divina, desenvolve-se segundo a akolouthia, que implica uma dimensão temporal. O tempo é, primariamente, a condição que permite a constituição ordenada dos seres e que reflete a limitação dos tà onta pelo fato de terem um início e se encaminharem para um fim.
Neste sentido, define-se, em princípio, por uma dimensão vectorial, implica um adensamento que parte do nada e, permitindo o surgir de seres novos, desenha uma irreversibilidade a caminho dum pleroma.
Esta mutabilidade originária da criatura implica uma espécie de receptáculo ôntico, que permite o seu realizar e transparece na ordem finita e harmoniosa do universo, gerando limites e ritmos próprios para cada ser: é o diastema ou diastasis.
NOTAS
Cf. PLATÃO, Sofista, 248 e 249 a; e PLOTINO, Eneadas, III, 6, 6 (15-17). ↩
Idem, ibidem, 21-3. ↩
Cf. toda a argumentação de Oratio catechetica (PG, XLV, 14 A-25 A) relativa ao Verbo e ao Espírito Santo.
S. Gregório foi uma das figuras mais destacadas do I Concílio de Constantinopla, onde foi sancionado o dogma da Trindade, segundo a fé de Niceia. Ao longo da sua obra, afloram continuamente sugestões para a elaboração filosófica e dogmática desta problemática.
As suas obras trinitárias mais importantes são, além do Oratio catechetica. Contra Eunomium, Ad Abiabium, Adversus graecos de communibus notionibus, Ad Simpiicium, De fide, Ad Eustathium de Sancta Trinitate.
Sobre o assunto, poderão consultar-se: S. GONZALEZ, «La formula Mia ousia treis hypostasis en San Gregório de Nissa», in Anaiecta Gregoriana, XXI (Roma, 1939); G. ISAYE, «L’unité de l’opération divine dans les écrits trinitaires de Saint Grégoire de Nysse», in RSR XXVII-I, (1937); M. HARL, «À propos d’un passage du Contre Eunome de Grégoire de Nysse: ájcóppoia et les titres du Christ en Théologie Trinitaire», in RSR, LV, 1, (1967); BOUCHET «Le vocabulaire de l’union et du rapport des natures chez Saint Grégoire de Nysse», in RT, LXVIII, 4, (1968). ↩PLOTINO, Eneadas, III, 7, 11 e IV, 4, 15.
A bibliografia sobre a problemática do tempo na filosofia grega é vastíssima. Limitamo-nos, pois, a assinalar algumas obras de conjunto e mais recentes: J. F. CALLAHAN, Four views of Time in Ancient Philosophy (Cambridge, Massachussets, 1948), F. CHATELET, La naissance de l’histoire. La formation de la pensée historique en Grèce (Paris, 1962), W. VON LEYDEN, «Time, number and eternity in Plato and Aristotle» in Philosophical Quaterly, 14 (1964), C. RAU, «Theories of time in ancient philosophy (Plato, Aristotle, Plotinus, St. Augustine)», in The Philosophical Review, 62 (1953), 514-25, Z. ZAVIRSKI, L’évolution de la notion du temps (Cracovia, 1936). ↩