Gregório de Nissa: Divindade

Por este motivo, não nos enganava nosso raciocínio ao dizer que, no que diz respeito à virtude, é impossível uma definição da perfeição, já que demonstramos que tudo que se encontra demarcado por alguns limites não é virtude. E como eu disse que para aqueles que vão atras da virtude é impossível alcançar a perfeição, esclarecerei meu pensamento com relação a esta questão. O Bem em sentido primeiro e próprio, aquele cuja essência é a Bondade, esse mesmo é a Divindade. Esta é chamada com propriedade – e é realmente – tudo aquilo que implica sua essência. Como já foi demonstrado que a virtude não tem mais limite alem do vício, e foi demonstrado também que na Divindade não cabe o que é contrário, conclui-se consequentemente que a natureza divina é infinita e ilimitada. Portanto, quem busca a verdadeira virtude não busca outra coisa senão Deus, já que Ele é a virtude perfeita. Com efeito, a participação do Bem por natureza é completamente desejável para quem o conhece, e, alem disso, o Bem é ilimitado; segue-se, pois, necessariamente que o desejo de quem busca participar dele é coextensivo com aquilo que é ilimitado, e não se detém jamais. Portanto, é impossível alcançar a perfeição, pois, como já dissemos, a perfeição não está circunscrita por nenhum limite; o único limite da virtude é o ilimitado. E como poderá alguém chegar ao limite prefixado, se este limite não existe? Porem o fato de havermos demonstrado que o que buscamos é totalmente inatingível, não justifica que se possa descuidar do preceito do Senhor, que diz: Sede perfeitos, como é perfeito vosso Pai celeste. Com efeito, aqueles que têm bom senso julgam grande ganância não carecer de uma parte dos bens verdadeiros, ainda que seja impossível alcança-los de forma completa. Deve-se portanto, por todo ardor em não estar privado da perfeição possível e, em conseqüência, em alcançar dela tanto quanto sejamos capazes de receber em nosso interior. Talvez a perfeição da natureza humana consista em estar sempre dispostos a conseguir um maior bem. Parece-me oportuno tomar a Escritura como guia nesta questão. De fato, a voz de Deus diz por meio da profecia de Isaías: Lançai os olhos para Abraão vosso pai, e para Sara que vos deu à luz (Is 51,2). A palavra divina faz esta exortação àqueles que erram longe da virtude, para que assim como os navegantes que se desviaram de sua rota para o porto corrigem-se de seu erro graças a um sinal que se lhes faz visível – vendo um sinal de fogo posto no alto ou em cima de um monte – assim também aqueles que erram no mar da vida levados por uma mente sem timoneiro, se dirijam novamente ao porto da vontade divina seguindo o exemplo de Abraão e Sara. A natureza humana se divide em feminino e masculino, e a escolha entre virtude e vicio se apresenta igualmente ante ambos os sexos. Por esta razão, a palavra divina oferece o exemplo de virtude correspondente a cada uma das partes, para que, olhando cada uma para o que lhe é afim – os homens para Abraão e a outra parte para Sara – as duas se encaminhem para a vida virtuosa com exemplos que lhe sejam próximos. Também será suficiente para nós a lembrança de um destes personagens ilustres por sua vida, para faze- lo desempenhar o papel de guia, e mostrar assim como é possível que a alma chegue ao porto seguro da virtude, onde já não estará exposta de nenhuma forma às tempestades da vida, e onde não correrá o risco de cair no abismo do vicio por causa dos sucessivos embates das ondas das paixões. HISTÓRIA DE MOISÉS PREFÁCIO

O espetáculo não só produzia espanto na alma através dos olhos, mas também infundia terror através dos ouvidos, pois um ruído estrondoso se difundia do alto para todos os que estavam abaixo. Sua primeira escuta já era penosa e insuportável para todo ouvido, pois parecia o troar das trombetas, porem superava toda comparação pela intensidade e pelo terrível ruído; ao aproximar-se tornava-se ainda mais espantoso a aumentar sempre seu ruído. Tratava-se de um ruído articulado: o ar, pelo poder divino articulava a palavra sem órgãos vocais. Esta palavra não era pronunciada sem substância, mas promulgava mandatos divinos. A palavra crescia em intensidade na medida em que alguém avançava, e a trombeta ultrapassava a si mesma, superando sempre os sons já emitidos com os que se seguiam (Ex 19, 19). Todo o povo era incapaz de suportar o que via e ouvia. Por esta razão apresentaram todos uma súplica a Moisés: que fosse mediador da lei, pois o povo não se negaria a crer que era mandato divino tudo o que ele lhes mandasse conforme a instrução recebida do alto. Havendo todos descido novamente ao pé da montanha, Moisés foi deixado só e mostrou em si mesmo o contrario do que poderia parecer natural. De fato, enquanto os demais suportam melhor as situações temíveis se estão todos juntos, este se fez mais animado quando se afastou dos que o acompanhavam, manifestando assim que o medo que experimentara no início não era próprio dele, mas que o havia padecido por padecer juntamente com aqueles que estavam assustados. Moisés, livre da covardia do povo como de uma carga, fica só consigo mesmo. È então que enfrenta as trevas e penetra dentro das realidades invisíveis, desaparecendo da vista dos que olhavam. Com efeito, havendo entrado no santuário do mistério divino, ali, sem ser visto, entra em contato com o invisível, penso que ensinando com isto que quem quiser se aproximar de Deus deve afastar-se de todo o visível e como quem está sobre um monte, levantando sua mente para o invisível e incompreensível, crer que a divindade está ali onde a inteligência não alcança. Chegando ali, recebe os mandamentos divinos (Ex 20, 1-17). Estes consistiam em um ensinamento sobre a virtude, cujo ponto principal é a piedade e ter uma concepção acertada sobre a natureza divina, isto é, que esta transcende todo o conceito e toda a representação, sem que possa ser comparada com nenhuma das coisas conhecidas. De fato, ele recebe a ordem de não considerar em sua reflexão sobre a Divindade nenhuma das coisas compreensíveis, e de não comparar a natureza que a tudo transcende a nenhuma das coisas conhecidas por meio de conceitos, mas apenas crer que existe e deixar sem investigar, como algo inacessível, como é, quão grande seja, onde está, qual é sua origem. A palavra divina acrescenta a isto as orientações que concernem aos costumes, finalizando seus ensinamentos com preceitos gerais e particulares. È geral a lei que proíbe toda a injustiça quando diz que é necessário comportar-se em relação ao próximo com amor, pois, ao observá-la, resultará como conseqüência que ninguém causará nenhum mal a seu próximo. Entre as leis particulares, está prescrito o honrar os progenitores, e se encontra enumerado o catálogo das faltas condenadas (Ex 21-23). Como se sua inteligência tivesse sido purificada com estes preceitos, Moisés avança a uma mistagogia ao lhe mostrar o poder divino, o conjunto de uma tenda de campanha. Esta tenda era um santuário cuja beleza era de uma variedade impossível de explicar: os vestíbulos, as colunas, os tapetes, a mesa, as lâmpadas, o altar dos perfumes, o altar dos holocaustos e o propiciatório; e, no interior do Santo, o impenetrável e inacessível. Para que a beleza e a disposição de todas estas coisas não fugissem de sua memória, e para que esta maravilha fosse mostrada também aos que estavam no pé do monte, ele recebe a ordem de não confia-lo à simples escritura, mas de imitar em uma construção material aquela obra imaterial, utilizando nela os materiais mais preciosos e esplêndidos que se encontram sobre a terra. HISTÓRIA DE MOISÉS 7.

Moisés chegou então a isto, e agora chega também todo aquele que, seguindo seu exemplo, despoja a si mesmo de sua envoltura terrena e olha para a luz que sai da sarça, isto é, o raio de luz que nos ilumina através da carne cheia de espinhos, que é, como diz o Evangelho, a luz verdadeira (Jo 1, 19) e a verdade (Jo 14, 6). Então este chega a ser capaz de prestar ajuda aos demais no sentido da salvação, de destruir a tirania daquele que domina com artes más, e de encaminhar à liberdade os que estão debaixo da tirania de perversa escravidão. A transformação da mão direita e a mudança do bastão em serpente (Ex 4, 3-7) são o começo dos prodígios. Parece-me que nestes prodígios se dá a entender simbolicamente o mistério da manifestação da Divindade aos homens através da carne do Senhor, graças à qual tem lugar a destruição do tirano e a libertação dos que estão oprimidos por ele. Leva-me a esta interpretação o testemunho profético e evangélico. Pois o profeta diz: Esta é a mudança da destra do Altíssimo (Sal 76, 11), como se a Divindade, considerada imutável, se houvesse mudado conforme nosso aspecto e figura por condescendência para com a debilidade da natureza humana. A mão do Legislador tomou uma cor distinta da que lhe é natural ao ser tirada do peito; voltando novamente ao peito, tornou à beleza que lhe era própria e natural. O Deus Unigênito, o que está no seio do Pai (Jo 1, 18), é a direita do Altíssimo (Sal 76, 11). Quando se manifestou a nós saindo do seio, se transformou conforme nossa forma de ser; depois de haver curado nossa enfermidade, novamente recolheu ao próprio seio, o seio da direita do Pai, a mão que havia estado entre nós e que havia tomado nossa cor. Então não tornou passível o que era de natureza impassível, mas por sua comunicação com o que era impassível transformou em impassibilidade aquilo que era mutável e passível. A transformação do bastão em serpente não há de perturbar os amigos de Cristo como se tivéssemos que harmonizar a palavra do mistério com um animal que lhe é oposto (Ex 4, 3; 7, 10 e Nm 21, 9). A verdade mesma não afasta esta imagem quando diz com a voz do Evangelho: Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que seja levantado o Filho do homem (Jo 3, 14). O sentido é claro. Se o pai do pecado foi chamado serpente pela Sagrada Escritura (Gn 3, 1), e o que nasce da serpente é verdadeiramente serpente, segue-se que o pecado tem o mesmo nome daquele que o gerou. Pois bem, a palavra do Apóstolo dá testemunho de que o Senhor se fez pecado por nós (2Co 5, 21), ao revestir-se de nossa natureza pecadora. O símbolo se acomoda ao Senhor como foi dito. De fato, se a serpente é pecado e o Senhor se fez pecado, a conseqüência que se segue será evidente a todos : que quem se fez pecado, se fez serpente, a qual não é outra coisa senão pecado. Se fez serpente por nós para comer e destruir as serpentes dos egípcios produzidas pelos magos. Uma vez feito isto, a serpente se transforma novamente em bastão (Ex 7, 12) com o qual são castigados os que pecam, e são aliviados os que sobem o caminho escarpado da virtude, apoiando-se no bastão da por meio das boas esperanças. A é, na verdade, a substância das coisas que se esperam (Hb 11, 1). Quem chegou ao entendimento destas coisas é como um deus em relação àqueles que, seduzidos pela ilusão material e sem substância, opõem-se à verdade e julgam coisa vã escutar falar a respeito do ser. Pois disse o Faraó : Quem é ele para que eu escute sua voz? Não conheço o Senhor (Ex 5, 2). O Faraó só julga digno aquilo que é material e carnal, as coisas que caem sob as sensações irracionais. Ao contrário, se alguém tiver sido fortalecido pela iluminação da luz, e tiver recebido tanta força e tanto poder contra os adversários, então, como um atleta convenientemente preparado por seu treinador nos varonis exercícios do esporte, se dispõe, confiante e audaz, para o ataque dos inimigos, tendo na mão aquele bastão, isto é, o ensinamento da , com o que há de triunfar sobre as serpentes egípcias. A mulher de Moisés, saída de um povo estrangeiro (Ex 4, 20), o acompanhará. Há algo nada desprezível da cultura pagã para nossa união com ela com a finalidade de gerar a virtude. Com efeito, a filosofia moral e a filosofia da natureza podem chegar a ser esposa, amiga e companheira para uma vida mais elevada, com a condição de que os frutos que procedem delas não conservem nada da imundície estrangeira. Pois se esta sujeira não tiver sido circuncidada e cortada ao meio até o ponto em que todo o daninho e impuro haja sido arrancado fora, o anjo que lhes sai ao encontro lhes causará um terror de morte. A mulher o aplaca mostrando-lhe seu filho purificado pela ablação do sinal pelo qual se reconhece o estrangeiro (Ex 4, 24-26). Julgo que a quem esteja iniciado na interpretação da história será patente, por tudo que se disse, a continuidade do progresso na virtude que mostra o discurso seguindo, passo a passo, a conexão dos acontecimentos simbólicos da história. INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 4.

O ensinamento da verdade é acolhido segundo as disposições dos que recebem a palavra. De fato, a palavra mostra a todos o que é bom e o que é mau. Pois bem, quem é dócil àquilo que lhe é mostrado tem a mente na luz, enquanto que quem tem a disposição contrária e não aceita que a alma olhe para a luz da verdade permanece na obscuridade da ignorância. Se a interpretação que demos ao conjunto da passagem não estiver errada, então a interpretação dada a cada um dos detalhes não lhe será totalmente oposta, pois a exegese de cada um deles está compreendida no conjunto. Portanto, não há nada de estranho em que o hebreu permanecesse incólume diante das pragas dos egípcios, embora estivesse vivendo no meio desses estrangeiros, posto que também agora é possível ver que sucede a mesma coisa. De fato, estando divididos os homens nas grandes cidades entre doutrinas contrárias, para uns a água do manancial da é potável e límpida, e a conseguem mediante o ensinamento divino, enquanto a água se torna sangue corrompido para aqueles que se converteram em egípcios por causa de suas perversas opiniões (Ex 7, 20). Muitas vezes os sofistas do erro rondam também a água dos hebreus para converte-la em sangue com a contaminação da mentira, isto é, para mostrar-nos que nossa doutrina não é como é, porem não conseguem corromper totalmente a água, embora a superfície fique avermelhada por causa do erro. Ainda que esteja caluniada pelos inimigos, o hebreu bebe água verdadeira, sem prestar atenção à aparência de erro. O mesmo cabe dizer da espécie de rãs (Ex 8, 1-6), ruidosa e maléfica, que se introduz sub- reptíciamente nas casas, habitações e dispensas dos egípcios, sem chegar a tocar a vida dos hebreus: sua vida é anfíbia, seu salto rasteiro; é repugnante não só por seu aspecto como também pelo fedor de sua pele. Os desastrosos frutos da maldade que surgem do coração sujo dos homens como gerados no pântano, são certamente como uma espécie de rãs. Estas rãs habitam as casas de quem se fez egípcio por escolha de seu estilo de vida; se deixam ver às mesas, não abandonam os leitos e se introduzem nas dispensas onde se guardam as coisas. Considera a vida suja e desavergonhada, nascida de um verdadeiro limo pantanoso, que, ao imita-lo, se assemelha à natureza irracional. Falando com rigor, em seu estilo de vida, não pertence a nenhuma das duas naturezas, pois é homem segundo sua natureza, porem se transformou em besta por sua paixão. Por esta razão mostra em si mesma aquele modo de vida anfíbio e ambíguo. E assim encontrarás nessa vida os sinais desta praga, não só nos leitos, mas também nas mesas, nas dispensas e em toda a casa. Um homem assim deixa, por onde quer que vá, o rastro de sua vida dissoluta, de forma que todos podem distinguir facilmente a vida do homem licencioso da vida do homem puro, inclusive na decoração da casa. De fato, na casa do impuro, sobre o reboco das paredes, encontra-se pinturas feitas com habilidade, que, ao trazer à memória as formas da debilidade, excitam ao prazer sensual e introduzem as paixões na alma através da contemplação de coisas vergonhosas, enquanto que na casa do sábio, pelo contrário, há todo o cuidado e cautela para manter a vista livre de espetáculos obscenos. Do mesmo modo a mesa do sábio se encontra limpa, enquanto que a do que se espoja em uma vida lodosa está suja como as rãs, e transbordante de comidas. E assim se entrasses nas dispensas, isto é, nas coisas ocultas e reservadas de sua vida, encontrarias ali, nas intemperanças, um montão ainda maior de rãs. A história diz que o bastão da virtude fez estas coisas contra os egípcios. Não nos desconcertemos por esta forma de falar. Também diz a história que o tirano foi endurecido por Deus (Ex 9, 12 e Rm 9, 17- 18). Como seria digno de condenação aquele que tivesse sido feito duro e refratário por uma força irresistível vinda do alto? O divino Apóstolo diz a mesma coisa: Posto que não tivessem por bem guardar o verdadeiro conhecimento de Deus, Deus os entregou às paixões vergonhosas (Rm 1, 28 e 26), falando dos pederastas e de quantos se envilecem com as diversas formas vergonhosas e inconfessáveis da vida dissoluta. Porém, embora seja verdade que a divina Escritura se expressa dizendo que Deus entregou às paixões vergonhosas aqueles que se entregaram a elas, nem o Faraó se endureceu por querer divino, nem a vida sórdida, própria das rãs, é causada pela virtude. De fato, se a Divindade tivesse querido isto, tal querer teria tido absolutamente a mesma força sobre todos, de forma que jamais se poderia estabelecer diferença alguma entre virtude e vício. Ao contrário, uns e outros, os que são dirigidos pela virtude e os que caem no vício, vivem de formas diferentes, e ninguém poderá, racionalmente, atribuir a uma fatalidade estabelecida pelo querer divino estas diferenças no modo de viver, que surgem exclusivamente da livre escolha de cada um. INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 9.

Assim pois, quando Moisés cresce em conhecimento, confessa que vê Deus nas trevas, isto é, que agora sabe que a Divindade, por sua própria natureza, é algo que supera todo conhecimento e toda compreenção. Moisés – disse – entrou nas trevas, onde estava Deus (Ex 20, 21). Que Deus? Aquele que fez das trevas seu esconderijo (Sal 17, 12), como disse Davi, o qual foi iniciado nos mistérios secretos no mesmo santuário. Chegando ali, Moisés recebe de novo por meio da palavra os mandamentos que recebeu por meio das trevas, para que – assim creio -, nos confirmasse os ensinamentos sobre estas coisas com o testemunho da palavra divina. Pois em primeiro lugar, a palavra divina proíbe que os homens comparem a Divindade com alguma das coisas conhecidas, porque todo conceito, elaborado pelo entendimento com uma imagem sensível para conhecer e alcançar a natureza divina, dá uma imagem falsa de Deus, e não dá a conhecer o próprio Deus. A virtude da piedade tem dois aspectos: o que concerne a Deus e o que concerne à retidão dos costumes, pois a pureza de vida é uma parte da piedade. Moisés, ao aprender em primeiro lugar o que é necessário saber a respeito de Deus, que conhecê-lo consiste em não formar nenhuma idéia dEle a partir das coisas conhecidas segundo a forma humana de conhecer, entende também a outra face da virtude, ao aprender com que modo de viver se conduz retamente a vida virtuosa. Depois disto Moisés chega à tenda não feita por mão de homem. Quem o seguirá em seu caminhar através destas realidades e em seu elevar-se a tal altura com a mente, a ele, que subindo mais e mais, se eleva constantemente acima de si mesmo em ascensão às coisas mais altas? Primeiro abandonou a base da montanha, separando-se daqueles que careciam de forças para a ascensão. Depois, tendo chegado ao alto da subida, agüenta nos ouvidos o fragor das trombetas. Depois destas coisas, penetra no santuário secreto da teognose. Porem tampouco aqui permanece quieto, mas ascende até a tenda não feita por mão de homem (Hb 9, 11). Pois quem se elevou com tais ascensões encontra aqui o término. Parece-me que a trombeta celeste, interpretada de outra forma, se converte, para quem a ouve, em guia do caminhar até o que não está feito por mão de homem. Pois a harmonia das maravilhas existentes no céu grita a sabedoria divina que resplandece no universo e proclama por meio das coisas visíveis a grande glória de Deus, conforme o que foi dito: os céus proclamam a glória de Deus (Sal 18, 2). Esta, com a claridade e sonoridade de seu ensinamento, se converte em trombeta de grande voz, como disse um dos profetas: o céu fez soar a trombeta no alto (Eclo 45, 20). Quem purificou o ouvido do coração e o tornou sensível, depois de acolher este som – refiro-me ao que se origina da contemplação dos seres e que leva ao conhecimento do poder divino -, é guiado por ele até penetrar com o pensamento ali onde está Deus. Isto é chamado trevas pela Escritura, para indicar, como dissemos, o incognoscível e o invisível; tendo chegado ali vê aquela tenda não feita por mão de homem e mediante uma imitação material a dá a conhecer aos que estão abaixo. INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 24.

Concorda esta interpretação com as coisas já ditas a respeito de Aarão, quando, por ocasião de seu encontro com Moisés, o reconhecemos como o que socorre e protege, o que realiza juntamente com ele os prodígios contra os egípcios. O conhecemos justamente como superior, já que a natureza angélica e incorpórea foi feita antes que a nossa; como irmão, obviamente, pelo parentesco de sua natureza intelectual com nossa natureza intelectual. Existe a objeção de como se pode tomar em seu sentido melhor o encontro de Aarão, que se converteu para os israelitas em servidor da idolatria? Porem, neste lugar, o texto explica claramente o equívoco da “irmandade”, pois o significado desta palavra não é o mesmo em todos os lugares, já que toma este nome em sentidos opostos. Um é o irmão que abate o tirano egípcio, e outro o que faz uma cópia do ídolo para os israelitas, ainda que seja idêntico o nome de ambos. Contra irmãos desta classe impunha Moisés a espada. O que ordena aos demais, sem dúvida o estabelece também para si mesmo. A destruição de um irmão desta classe é a aniquilação do pecado. Com efeito, todo o que faz desaparecer o mal metido dentro de si pela sedução do adversário, este matou em si mesmo o que vivia pelo pecado. Nosso ensinamento em torno disto se confirma ainda mais, se colocarmos a relação de alguns outros elementos do relato com a interpretação espiritual. Dissemos, de fato, que foi ordem daquele Aarão que eles se desprendessem de suas arrecadas. O desprendimento destas se converteu na matéria do ídolo (Ex 32, 2-3). Que diremos? Que Moisés havia adornado as orelhas dos israelitas com adorno de arrecadas, que é a Lei, e que o falso irmão, pela desobediência, tira o adorno colocado nas orelhas e faz com ele um ídolo. A primeira entrada do pecado foi o tirar as arrecadas, isto é, a decisão de desobedecer ao preceito. Como julgar a serpente como amiga e vizinha dos primeiros pais, a ela que sugeriu como coisa útil e boa afastar-se do mandado de Deus? Isto é o livrar as orelhas das arrecadas do preceito (Rm 10, 17). Portanto, quem tiver matado tais irmãos, amigos e vizinhos ouvirá da Lei aquela palavra que conta o relato que disse Moisés aos que haviam matado a estes: Cada um de vós consagrou hoje as suas mãos ao Senhor, matando seu filho, e seu irmão, para vos ser dada a benção (Ex 32, 29). Penso que a recordação daqueles que consentiram no pecado se introduziu oportunamente no discurso. Aprendemos assim que as tábuas feitas por Deus, nas quais havia sido gravada da lei divina, caíram na terra das mãos de Moisés e, quebrando-se pela dureza do solo, Moisés as refaz, embora não sejam inteiramente as mesmas, mas só o escrito nelas. Com efeito, tendo tomado as tábuas da matéria daqui de baixo, as apresenta ao poder de quem grava nelas a Lei, e assim atrai de novo a graça levando a Lei em tábuas verdadeiras, ao haver gravado Deus sua palavra na pedra. Guiados por estas coisas, talvez seja possível alcançar alguma inteligência da providência de Deus em nosso favor. Com efeito, se o divino Apóstolo disse a verdade chamando tábuas os corações (2Co 3, 3), isto é, a parte superior da alma – e sem dúvida diz a verdade aquele que sonda pelo Espírito as profundezas de Deus (1Co 2, 10) -, pode-se deduzir conseqüentemente que, no princípio, a natureza humana estava sem fraturas e era imortal, moldada pelas mãos divinas e embelezada com os caracteres não escritos da Lei, pois fisicamente estava dentro de nós uma vontade conforme à Lei, no afastamento do mal e no honrar à Divindade. INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 34.

Se nos apegarmos à letra, o sentido destas coisas não só permanecerá obscuro a quem o examina, como nem sequer estará livre de uma concepção inverossímil de Deus. Com efeito, parte anterior e parte posterior existem só nas coisas que têm forma, e toda forma é limite de um corpo. Portanto, quem imagina uma figura delimitando Deus, não pensará que Ele está livre de uma natureza corporal. Pois bem, todo corpo é evidentemente composto. O composto é constituído pela concorrência de elementos heterogêneos. Ninguém diria que o composto é indissolúvel. O que se pode dissolver não pode ser imortal. De fato, a corrupção é a dissolução do que é composto. Se tomarmos ao pé da letra as costas de Deus, por via de conseqüência seremos levados necessariamente a um absurdo. De fato, diante e atrás só se dão no que tem forma, e a forma só se dá no que tem corpo. E este, por sua própria natureza, pode ser dividido, posto que todo o composto pode dividir-se. O que pode ser dividido não pode ser imortal. Portanto, quem é escravo da letra pensará como conseqüência que a Divindade está submetida à corrupção. E sem dúvida, Deus é imortal de incorruptível. Mas então, que interpretação alem do sentido literal será coerente com a letra? Se uma parte nos obriga, no contexto do discurso, a buscar outra interpretação das palavras escritas, sem dúvida será conveniente fazer o mesmo com relação ao todo. O que entendemos de uma parte, isso mesmo havemos de tomar necessariamente em relação ao todo, pois não existe um todo se não está composto de partes. Portanto, o lugar perto de Deus, e a pedra neste lugar, e nela o lugar que se chama fenda, e a entrada de Moisés ali, e o estender da mão de Deus até a boca da fenda, e sua passagem, e a chamada, e depois disto a contemplação das costas, tudo isto será considerado de forma mais adequada se seguirmos a norma da interpretação espiritual. Qual é o significado? Que da mesma forma que os corpos pesados, se algo recebe impulso em um plano inclinado, ainda que nada o empurre depois deste primeiro movimento, se não há nada que corte o impulso com um obstáculo, são empurrados por si mesmos para baixo com força pela ladeira enquanto o plano permanecer inclinado costa abaixo; assim de forma contrária, a alma que se liberta da paixão terrena, se volta leve e veloz, começando a voar desde baixo até às coisas de cima, até o alto. E como nada acima corta seu impulso, pois a natureza do bem atrai a si a quem levanta os olhos para ela, a alma sempre se eleva alem de si mesma, em tenção pelo desejo das coisas celestiais, como diz o Apóstolo, até às coisas que estão adiante (Flp 3, 13), e elevará seu vôo cada vez mais alto. Com efeito, graças ao já conseguido, deseja não renunciar ao que está acima e torna incessante seu impulso às coisas de cima renovando sempre, com o já conseguido, a tenção para o vôo. De fato, o trabalhar da virtude alimenta sua força no cansaço, já que sua tenção não diminui pelo esforço, mas aumenta. Por esta razão dizemos que o grande Moisés, apesar de fazer-se cada dia maior, nunca se deteve no caminho para o alto, nem impôs a si mesmo algum limite até o cume, mas que uma vez posto o pé na escada em cujo cimo estava Deus (Gn 28, 12), como diz Jacob, subiu ininterruptamente ao nível superior, sem cessar nunca de subir, porque sempre há um degrau mais alto do que aquele a que já se chegou. INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 36.

Moisés rechaça o parentesco aparente com a rainha dos egípcios. Faz-se vingador do hebreu. Translada-se a uma vida solitária no deserto, não turbada pelo contato com os homens. Pastoreia ali em si mesmo o rebanho de animais domados. Vê o esplendor da luz. Torna leve sua subida à luz despojando-se do calçado. Conduz à liberdade seus parentes e compatriotas. Vê afundar-se o inimigo, carregado pelas ondas. Permanece sob a nuvem. Sacia a sede com a pedra. Recolhe pão do céu. Depois, com a elevação das mãos, vence o estrangeiro. Ouve a trombeta. Entra nas trevas. Penetra nas estâncias inacessíveis do tabernáculo não feito por mão de homem. Aprende as coisas inefáveis do sacerdócio divino. Destroi o ídolo. Aplaca Deus. Restabelece a lei quebrada pela maldade dos judeus. Resplandece pela glória e, alçado por estas elevações, ainda arde em desejos, e não se sacia de ter mais; ainda tem sede daquele de que foi completamente saciado, e pede obte-lo como se nunca o tivesse obtido, suplicando a Deus que se revele a ele, não na forma em que ele é capaz de participar dela, mas tal qual Ele é. Este sentimento me parece próprio de uma alma possuída pela paixão do amor à beleza essencial: a esperança não cessa de atrair a partir da beleza que se viu até à que está mais alem, acendendo sempre no que já conseguiu o desejo do que ainda está por conseguir. De onde se conclui que o amante apaixonado da Beleza, recebendo sempre as coisas visíveis como imagem do que deseja, aspira saciar-se com o modelo original desta imagem. E isto é o que quer a súplica audaz que ultrapassa o limite do desejo: gozar da beleza, não através de espelhos e reflexos, mas face a face (1Co 13,12). A palavra divina admite a petição mesmo tempo que a repudia, mostrando em poucas palavras um abismo incomensurável de conhecimento. Com efeito, a magnanimidade de Deus concede a Moisés saciar o desejo, porem não lhe promete nenhum repouso nem fartura desse desejo. Pois não se teria mostrado a si mesmo a seu servo se a visão houvesse sido tal que detivesse o desejo do que via, pois nisto consiste ver verdadeiramente a Deus: em que quem o vê não se sacia jamais em seu desejo. Por isso diz: Não poderás ver meu rosto. Com efeito, nenhum homem verá meu rosto e seguirá vivendo (Ex 33, 20). O relato diz isto não como se o mostrar-se convertesse Deus em causa de morte para quem o visse. Como poderia a face da vida converter-se jamais em causa de morte para quem se acercasse dela? A menos que, posto que Deus é por essência o que dá a vida, e posto que um traço essencial do conhecimento da natureza divina é o de estar acima de todo o conhecimento, quem pensar que Deus é alguma das coisas agora conhecida, esse não tem vida, pois se desviou do ser dos seres a ponto de, com uma fantasia fora da razão, se pensar que existe. Pois o que verdadeiramente existe é a vida verdadeira. E isto é inacessível ao conhecimento. Se pois a natureza que dá a vida transcende todo o conhecimento, aquilo que é abarcado pelo conhecimento certamente não é a vida. O que não é a vida não tem uma natureza apta para dar a vida. Por esta razão, se dá satisfação ao desejo de Moisés precisamente naquilo que este desejo fica sem satisfação. Com efeito, aprende do que já foi dito que a Divindade, pela própria natureza, é inabarcável, pois não está circunscrita por nenhum limite. Pois se pensássemos a Divindade com algum limite, seria necessário considerar juntamente com o limite o que haveria mais além deste limite. Com efeito, o que está limitado termina certamente em alguma coisa, como o ar é limite dos animais terrestres, e a água é o limite dos aquáticos. E posto que o peixe é rodeado pela água em todas as partes, e o pássaro pelo ar, e o meio da água no caso dos aquáticos e o do ar no caso do pássaro é o marco do limite no ponto extremo que abarca o pássaro ou o peixe ao qual delimitam a água e o ar, assim necessariamente, se pensarmos a Divindade dentro de um limite, é necessário que esteja abarcada por algo heterogêneo a sua natureza, e a lógica mostra que o continente é maior que o contido. INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 37.

Afirma-se que a Divindade é o Bem essencial. Pois bem, o que tem uma natureza distinta do bem é alheio ao bem, e o que é alheio ao bem pertence à natureza do mal. Demonstra-se que o continente é maior que o contido. Segue-se necessariamente que os que julgam que a Divindade está contida em um limite, devem admitir também que está abarcada pelo mal. Sendo evidentemente menor a natureza do contido que a do continente, segue-se a superioridade do mais vasto. Portanto quem encerra a Divindade em um limite estabelece que o bem está dominada por seu contrário. Porem isto é absurdo. Não se pensará, pois, em nenhum limite da natureza infinita. O que não está limitado não tem uma natureza que possa ser compreendida. Eis aqui porque todo o desejo do bem, que atrai para aquela ascensão, cresce constantemente junto com a trajetória de quem se apressa para o bem. Isto é ver realmente a Deus: não encontrar jamais a saciedade do desejo. É totalmente inevitável que quem vir se inflame em desejos de ver ainda mais, precisamente por causa daquelas coisas que é possível ver. E desta forma nenhum limite interromperá o progresso na ascensão a Deus, por não haver limite no bm, nem ser interrompido por nenhuma fartura o aumento do desejo do bem. Qual é aquele lugar perto de Deus? Que é a pedra? E qual é novamente a fenda na pedra? Que é a mão de Deus que tapa a fenda da pedra? Que é a passagem de Deus? Que são suas costas, cuja visão promete Deus a Moisés quando pedia para ver sua face? É necessário que cada um destes dons seja verdadeiramente grande e digno da magnificência do doador, ao ponto de julgar uma promessa mais esplêndida e elevada que todas as teofanias outorgadas já ao grande servidor. Porem, como pode alguém deduzir destas palavras acima com que Moisés pede subir depois de tantas ascensões, e a cuja subida Aquele que faz cooperar todas as coisas para o bem de quem ama a Deus (Rm 8, 28) conduz dizendo: Eis aqui um lugar junto de mim (Ex 33, 21)? Eis aqui uma interpretação que se harmoniza facilmente com as coisas que já consideramos. Ao falar do lugar, não delimita quantitativamente o que lhe mostra, pois não existe medida do que carece de quantidade, mas conduz o ouvinte ao infinito ilimitado por meio da consideração do limitado por uma medida. O relato parece significar isto: Posto que o desejo te lança ao que está adiante e não tens nenhuma fartura em tua corrida, e o bem não tem limite algum, mas o desejo se orienta sempre àquilo que é ainda maior, há tanto lugar junto a mim, que quem corre nele jamais poderá alcançar o final da corrida. Porem, de outro ponto de vista, a corrida é quietude. Coloca-te – diz – sobre a fenda (Ex 33, 21). INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 38.

O fato de que o investigador do vôo das aves, que mencionamos, praticava a magia é atestada pelo relato quando diz que tinha o poder de fazer vaticínios na mão e de consultar através das aves e, antes disso, que havia conhecido pelo zurro da jumenta o concernente à rivalidade que tinha diante. A Escritura apresentou o zurro da jumenta como uma palavra articulada, porque ele habitualmente consultava com uma força diabólica as vozes dos animais. Mostra-nos com isto que quem está enredado com este engano dos demônios chega inclusive a tomar como uma palavra racional o ensinamento que encontra na observação dos sons dos irracionais. Ao escuta-la, compreendeu por aquelas mesmas coisas em que havia errado, que era invencível a força contra a qual o haviam alugado. Também na narração evangélica a turba de demônios chamada legião (Mc 5, 9 e Lc 8, 30), se prepara para se opor ao poder do Senhor. Porem quando se aproxima Aquele que tem o poder sobre todas as coisas, a horda proclama seu poder excelso e não oculta a verdade: que este é a força divina, e que em tempo vindouro infligirá o castigo aos pecadores. Pois diz a voz dos demônios: Sabemos quem és: o Santo de Deus, e que vieste antes do tempo a atormentar-nos (Mc 1, 24; 5, 7 e Lc 4, 34-35). Isto é o que sucedeu também então: o poder demoníaco que acompanhava o mago ensinou a Balaan que o povo era invencível e invulnerável. Harmonizando este relato com as coisas que já explicamos, dizemos que quem quer maldizer os que vivem na virtude não pode pronunciar nenhuma palavra hostil nem discordante, mas converte sua maldição em benção. Isto significa que a afronta da difamação não alcança os que vivem na virtude. Com efeito, como pode ser caluniado de avareza aquele que não possui nada? Como será reprochado de libertino aquele que vive só levando uma vida de anacoreta? De cólera aquele que é manso? De orgulho aquele que é humilde? Ou como se dirigirá qualquer outra critica àqueles que são conhecidos pelo contrário, que têm por finalidade apresentar uma vida inacessível à critica a fim de que, como diz o Apóstolo, nosso adversário se envergonhe não tendo nada que dizer (Tt 2, 8)? Por esta razão disse a voz de quem havia sido feito vir para maldizer: como maldiria àquele que não maldiz o Senhor? (Nm 23, 8), isto é, como acusarei quem não oferece matéria de acusação, já que, por olhar sempre para Deus, leva uma vida inacessível ao pecado? Apesar de haver falado isto, o inventor da maldade não cessa em absoluto seu projeto contra os que tentava, mas muda a insídia para sua forma mais antiga de tentar, tentando atrair a natureza para o mal outra vez por meio do prazer. Com efeito, o prazer é apresentado por todo vício como isca que arrasta facilmente as almas sensuais a cair no anzol da perdição. É sobre tudo por meio do prazer impuro que a natureza é arrastada para o mal sem que se controle. É o mesmo que sucede agora. Com efeito, aqueles que haviam prevalecido sobre as armas, que haviam demonstrado que todo ataque de ferro era mais débil que sua própria força, e que com seu poder haviam feito fugir o exército dos inimigos, estes foram feridos pelos dardos femininos através do prazer. E os que haviam sido mais fortes que os varões se converteram em vencidos pelas mulheres. Com efeito, logo que vieram às mulheres que punham ante eles suas próprias formas em vez de armas, imediatamente esqueceram o ímpeto de seu valor, apagando seu ardor no prazer. Eles estavam em uma situação na qual era natural deixar-se levar à união proibida com estrangeiros. Com efeito, a vizinhança com o mal já era um afastamento da ajuda do bem. Imediatamente a Divindade se levantou em cólera contra eles. Porem o zeloso Finéias não esperou que o pecado fosse purificado por uma decisão do alto, mas ele mesmo se converteu em juiz e verdugo (Nm 25, 1-9). Enchendo-se de ira contra quem se havia deixado levar pela paixão, fez as vezes de sacerdote purificando o pecado com sangue: não com o sangue de algum animal inocente, que não tivera parte na imundície da intemperança, mas com o dos que se haviam unido entre si no pecado. Sua lança deteve o movimento da justiça divina ao atravessar de um só golpe os corpos dos dois, mesclando com a morte o prazer dos pecadores. Parece-me que o relato propõe aos homens um ensinamento útil à alma. Através dele aprendemos que, sendo muitas as paixões que se opõem à razão do homem, nenhuma outra paixão tem tanto poder contra nós que possa igualar a enfermidade do prazer. Pois o fato de que aqueles israelitas, que unidos se haviam mostrado mais fortes que a cavalaria egípcia, haviam superado os amalecitas, haviam parecido temíveis ante o povo que lhes era vizinho e depois destas coisas haviam vencido a falange dos madianitas, hajam caído na escravidão da paixão quando viram as mulheres estrangeiras, mostra bem – como dissemos – que a voluptuosidade é para nós um inimigo difícil de combater e de vencer. Tendo vencido imediatamente, só com seu comparecimento, a homens impetuosos com as armas, a voluptuosidade levantou contra eles a bandeira da desonra, publicando sua infâmia à luz do sol. Pois mostrou que os homens, por sua causa, converteram em animais os que o impulso bestial e irracional à impureza convenceu a que esquecessem de sua natureza humana, a ponto de não encobrir sua impiedade, mas gloriar-se com a infâmia de sua paixão e adornar-se com a imundície da vergonha, chafurdando como porcos na lama da impureza, abertamente, à vista dos demais. Que lição tiraremos deste relato? Que sabedores de quanta força para o mal tem a enfermidade da voluptuosidade, mantenhamos nossa vida o mais afastada possível desta vizinhança, de forma que esta enfermidade, que é como um fogo que com sua proximidade acende a chama perversa, não tenha nenhum acesso a nós. Isto é o que ensina Salomão na Sabedoria ao dizer que não se deve pisar a brasa com o pé descalço e que não se deve introduzir fogo no seio (Pr 6, 27-28), pois está em nosso poder permanecer livres de paixão contanto que nos mantenhamos longe de avivar o fogo. Porem se, ao contrário, chegarmos a tocar este fogo ardente, penetrará em nosso seio o fogo da concupiscência, e então se seguirá a queimadura para o pé e a ruína para o seio. INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 46.