Gilson Existentia

Étienne Gilson — A EXISTÊNCIA NA FILOSOFIA DE S. TOMÁS

EXISTÊNCIA E CRIAÇÃO

O primeiro problema que a teologia natural tem a propor é o da existência de Deus. Ao tentar solucionar este problema, alguns metafísicos preferem situar o ponto de partida de sua indagação na consideração da existência do mundo físico; outros partem da natureza do mesmo, enquanto que outros partem de algumas de suas propriedades particularmente notáveis, por exemplo, do fato de que há movimento e de que o universo é muito menos um mundo do ser do que um mundo do vir a ser. São Tomás de Aquino prefere seguir este método. Assim, de qualquer modo, para tentar chegar à conclusão de que Deus existe, o filósofo tem que partir de entes finitos, ou das propriedades de tais entes. Surge então a pergunta a que o filósofo deve responder: se Deus é tal como se mostra ao fim de qualquer demonstração de sua existência, por que deveria haver um universo de coisas finitas? A existência, que serviu de ponto de partida de sua indagação, começa então a ser misteriosa para o filósofo.

Tomás de Aquino não poderia evitar este problema. Logo no início da Summa Theologiae (S. T. I, 2, 2), Tomás faz a pergunta: “Pode-se demonstrar que Deus existe?” Depois de respondê-la afirmativamente, prossegue fazendo uma pergunta ainda mais direta: “Deus existe?” — São bem conhecidas as cinco vias através das quais se pode provar a existência de Deus, na doutrina de São Tomás de Aquino. De fato, o número de vias é menos importante que a natureza dos vários acessos ao problema que as mesmas oferecem. Qualquer que seja a via selecionada por Tomás, a mesma pergunta surge em nossa mente, ao fim de cada uma delas: se há movimento, deve haver um Primeiro Motor Imóvel, mas se há um Primeiro Ser Imóvel, por que deveria ser um motor? Da mesma forma, se há causas eficientes finitas, deve haver, por necessidade, uma Primeira Causa Eficiente, mas se há tal causa eficiente, por que deveria haver outra qualquer?

A mesma observação se aplica a todas as conclusões sucessivas estabelecidas por Tomás na sua Summa (I, 2, 3), mas de forma evidente, depois da terceira, que deduz a existência de um Ser Necessário, do fato empírico de que achamos na natureza coisas que podem ser e não ser. Ainda que se aceitem o ponto de partida de sua prova, sua estrutura dialética e sua conclusão, não se pode evitar a dúvida: se há, verdadeiramente, um ser necessário, por que deveria haver entes que são meramente possíveis? Em resumo, é esse o problema. Pode-se demonstrar que, se há um mundo de vir a ser, deve haver um Primeiro Ser, mas como se pode provar, partindo novamente de um Primeiro Ser, que deveria haver um mundo de vir a ser? Inferir a necessidade a partir da contingência é certamente possível; o que parece mais difícil é deduzir a contingência da necessidade.

Na doutrina de São Tomás de Aquino,agrava-se ainda a dificuldade pelo fato notável de que, ao provar a existência de Deus, ele estava retirando seus principais argumentos de filosofias em que não surgiu este espinhoso problema. Se fosse chamado a responder, Aristóteles provavelmente diria que, com efeito, não há razão por que um Pensamento Que Pensa a Si Próprio devesse manter e meter no movimento um mundo de vir a ser; somente que, de fato, há um mundo assim e, desde que existe, não pode achar a fonte de seu movimento perpétuo senão mim motor imóvel. Não há o problema de como provar a existência do universo, numa filosofia que, como a de Aristóteles, dá por certo o fato de sua existência. Há, sempre houve e sempre haverá tal universo e deixemos que o fato mesmo seja resposta à pergunta.

Observação semelhante se aplica à célebre terceira via, que parte da possibilidade e da necessidade. Partindo do fato de que há possibilidade, conclui-se pela existência de um ser que tem de si sua própria necessidade e não a recebe de outrem. Neste ponto, na metafísica de Avicena, da qual provém a substância da prova, nenhuma pergunta surge quanto à existência de um mundo de possibilidade, pois, efetivamente, mesmo a existência de entes possíveis é necessária num universo como o de Avicena, em que aquilo que é possível em si é necessário em virtude de outrem. O Deus de Avicena chama-se Primus, o Primeiro, e é o ser necessário que subsiste em si mesmo, tão completamente transcendente dos demais que, com relação às suas criaturas, pode ser considerado como livre; e ainda tão necessário em si, que não tem possibilidade de não operar, ou de operar de maneira diferente daquela em que opera. No universo de Avicena há um mundo criado, mas o mundo de criação não pode não existir, nem ser de maneira diferente daquela que é.