Renascimento Humanismo — Eugênio Garin
Humanismo renascentista, segundo Garin
Excertos de análise de G. Reale
b) Diametralmente oposta é a reconstrução de Eugênio Garin, que reivindicou energicamente uma precisa valência filosófica para o humanismo, notando que a negação de significado filosófico aos studia humanitatis renascentistas deriva do fato de que, “as mais das vezes, entende-se por filosofia a construção sistemática de grandes proporções, negando-se que a filosofia também pode ser outro tipo de especulação, não sistemática, aberta, problemática e pragmática”. Polemizando com as acusações de diletantismo filosófico que alguns estudiosos fizeram aos humanistas, escreve Garin: “A razão íntima daquela condenação do significado filosófico do humanismo (… está no) amor sobrevivente por uma visão de filosofia constantemente combatida pelo pensamento do século XV. Aquilo cuja perda é lamentada por tantos é justamente o que os humanistas quiseram destruir, isto é, a construção de grandes ‘catedrais de ideias’, das grandes sistematizações lógico-teológicas: a filosofia que submete todo problema e toda pesquisa à questão teológica, que organiza e encerra toda possibilidade na trama de uma ordem lógica preestabelecida. Essa filosofia, ignorada no período do humanismo como vã e inútil, é substituída por pesquisas concretas, definidas e precisas na direção das ciências morais (ética, política, economia, estética, lógica e retórica) e das ciências da natureza (…) cultivadas iuxtapropria principia, fora de qualquer vínculo e de qualquer auctoritas (…).”
Aliás, diz Garin, a atenção “filológica” para com os problemas particulares “constitui precisamente a nova ‘filosofia’, ou seja, o novo método de examinar os problemas, que, portanto, não deve ser considerado, ao lado da filosofia tradicional, como um aspecto secundário da cultura renascentista, como acreditam alguns (basta pensar, por exemplo, na posição de Kristeller que examinamos), mas sim como o próprio filosofar efetivo”.
Uma das mais destacadas características desse novo modo de filosofar é o sentido da história e da dimensão histórica, com seu respectivo sentido de objetivação e de afastamento crítico do objeto historicizado, ou seja, historicamente considerado. Escreve Garin: “Foi então, graças àqueles poderosos pesquisadores de antigas histórias que conquistamos um igual distanciamento tanto da física de Aristóteles como do cosmos de Ptolomeu, libertando-nos imediatamente de sua opressora clausura. E isso porque físicos e lógicos de Oxford e Paris já haviam começado a corroer aquelas estruturas por dentro, estruturas que se encontravam bastante abaladas depois do terrível golpe desfechado por Ockham. Mas somente a conquista do antigo como sentido da história — própria do humanismo filológico — permitiu considerar aquelas teorias como aquilo que elas verdadeiramente eram: pensamentos humanos, produtos de certa cultura e resultado de experiências parciais e particulares; não oráculos da natureza ou de Deus, revelados por Aristóteles e Averróis, mas sim visões e cogitações humanas.”
A essência do humanismo não deve ser vista naquilo que ele conheceu do passado, mas sim no modo em que o conheceu, na atitude peculiar que adotou diante dele: “E precisamente a atitude adotada diante da cultura do passado e diante do próprio passado que define claramente a essência do humanismo. E a peculiaridade dessa atitude não se deve fixar em um singular movimento de admiração e afeto, nem em um conhecimento mais amplo, mas em uma consciência histórica bem definida. Os ‘bárbaros’ (= os medievais) não o foram por terem ignorado os clássicos, mas sim por não tê-los compreendido na veracidade de sua situação histórica. Os humanistas descobrem os clássicos porque os afastaram de si, procurando defini-los sem confundir o latim deles com o seu píóprio. Por isso, os humanistas verdadeiramente descobriram os antigos, fossem eles Virgílio ou Aristóteles, apesar de conhecidíssimos na Idade Média. E isso porque restituíram Virgílio ao seu tempo e ao seu mundo e procuraram explicar Aristóteles no âmbito dos problemas e dos conhecimentos da Atenas do século IV antes de Cristo. Por isso, no humanismo, não se pode nem se deve distinguir a descoberta do mundo antigo e a descoberta do homem, porque se tratou de uma só coisa, já que descobrir o antigo como tal significou comparar-se com ele e, distanciando-se, colocar-se em relação com ele. Significou tempo e memória, sentido da criação humana, da obra terrena e da responsabilidade. Não por acaso os maiores humanistas foram, em grande número, homens de Estado, pessoas ativas habituadas à livre atuação na vida pública de sua época.”
Mas a tese de Garin não se reduz a isso: ele coloca a nova “filosofia” humanista na realidade concreta daquele momento da vida histórica italiana, fazendo-a uma expressão dessa realidade, a ponto de explicar com razões sociopolíticas a reviravolta sofrida pelo pensamento humanista na segunda metade do século XV. Inicialmente, o humanismo foi uma exaltação da vida civil e das problemáticas a ela ligadas, porque estava vinculado à liberdade política daquele momento. O advento das tutelas e o eclipsar-se das liberdades políticas republicanas transformou os literatos em cortesões e impeliu a filosofia para evasões de caráter contemplativo metafísico: “Retirada sua Uberdade no plano político, o homem evadiu-se para um terreno diferente, voltando-se para si mesmo e procurando a liberdade do sábio (…). De um filosofar socrático, centrado no problema humano, passa-se para um plano platônico (…). Em Florença, enquanto Savonarola lança a última invectiva contra as tiranias que tudo corrompem e esterilizam, o ‘divino’ Marcúrio procura no hiperurânio uma margem serena onde se abrigar das tempestades do mundo.”