Gardeil Sabedoria

H.D. GARDEIL — INICIAÇÃO À FILOSOFIA DE SÃO TOMÁS DE AQUINO
2. A metafísica como sabedoria.

Outras precisões devem ser feitas. Considerada no sujeito, a sabedoria é para Tomás de Aquino um habitus, ou uma virtude, isto é, uma perfeição da inteligência que a faz proceder no seu ato com facilidade e exatidão. Sabe-se que, no peripatetismo, as virtudes humanas se distinguem em virtudes morais, que aperfeiçoam as potências apetitivas, e em virtudes intelectuais, que aperfeiçoam a inteligência. Em continuidade com o pensamento de Aristóteles (Ética a Nicômaco, l. 6), Tomás de Aquino distingue cinco espécies de virtudes intelectuais (Ia IIae, q. 57, a. 2), das quais três se referem ao intelecto especulativo: a ciência, a inteligência e a sabedoria; e duas ao intelecto prático: a prudência e a arte. Resulta, portanto, que a sabedoria é um habitas do intelecto especulativo, ao lado dos habitus da inteligência e da ciência. Como ela se distingue destes?

O verdadeiro, que é a perfeição própria do intelecto especulativo, pode ser considerado de duas maneiras: enquanto é conhecido por si mesmo, per se natum, ou enquanto é conhecido por um outro, per aliud natum.

O que é conhecido por si tem valor de princípio e é apreendido imediatamente pela inteligência que, para isto, é aperfeiçoada pelo habitus dito do intellectus.

O que é conhecido por um outro não pode evidentemente sê-lo senão a título de termo. Ora, isto pode se produzir de dois modos: ou trata-se do verdadeiro que tem valor de termo em um gênero particular de conhecimento, e neste caso a inteligência é aperfeiçoada pelo habitus da ciência; ou trata-se do verdadeiro enquanto este é termo último de todo conhecimento humano, e é aqui que intervém o habitus da sabedoria.

A sabedoria é assim o habitus ou a qualidade que aperfeiçoa o intelecto especulativo enquanto este visa obter um conhecimento absolutamente universal das coisas a partir dos princípios ou das mais elevadas razões. Segue-se desta definição que há, então, no domínio da ciência vários habitus, e que não se pode encontrar, sob uma mesma luz, senão uma só sabedoria.

Esta doutrina exige alguns esclarecimentos.

Pode-se distinguir de modo absoluto, como o fizemos, a sabedoria da ciência e da inteligência? Com efeito, e isto é uma primeira dificuldade. A sabedoria que explica pelas causas não é ela mesma uma ciência? Sim, é preciso responder, se tomamos ciência no sentido mais extenso do termo; não, se lhe damos a significação restrita que acabamos de definir (Ia IIae, q. 57, a. 2, ad I). De outra parte, há lugar para se colocar ao lado da sabedoria e da ciência um habitus especial dos princípios (o intellectus para Tomás de Aquino), estando entendido que a sabedoria e a ciência devem conhecer estes mesmos princípios, uma vez que deduzem a partir deles? Deve-se responder que ao intellectus é reservada a apreensão pura e independente dos princípios, enquanto que os outros habitus especulativos os apreendem apenas nas suas relações com as verdades que deles dependem. Mas, objetar-se-á, pelo fato de que parece tirar seus princípios do intellectus que os apreende neles mesmos, a sabedoria poderá ainda ser encarada como a virtude intelectual suprema? Sim, pois a sabedoria está, do ponto de vista dos princípios, em uma situação particular; o juízo superior ou a justificação crítica destes princípios cabe-lhe em todas as instâncias: ela é, em realidade, ao mesmo tempo, conhecimento das conclusões e apreciação dos princípios, e é devido a isto que ela está em definitivo acima do simples intellectus (Ia IIae, q. 66, a. 5, ad 4) .

Deve-se dizer que a sabedoria é puramente especulativa ou que também é prática? No uso corrente um e outro destes aspectos, especulativo (conhecimento desinteressado), e prático (regulação da conduta), são juntamente atribuídos à sabedoria. Para Tomás de Aquino eis o que é conveniente reconhecer: a sabedoria, que se situa em regime de fé, é simultaneamente especulativa e prática: ordenação dos conhecimentos e ordenação da atividade humana. Isto é verdadeiro para o dom da sabedoria (Ia IIae, q. 45, a. 3), e isto deve ser igualmente afirmado da teologia que, embora principalmente especulativa, é também uma ciência prática (Ia, q. 1, a. 4). A metafísica, pelo contrário, deve ser colocada, segundo a tradição aristotélica, entre os habitus puramente especulativos. O Estagirita alinhou-a sempre, com a física e a matemática, no grupo das ciências teóricas, diferenciando-se estas das ciências práticas pelo seu fim (Metaf., VI, c. 1); como também ocupou-se sempre em assinalar o seu caráter absolutamente desinteressado. A metafísica, sabedoria teorética natural suprema, é pois uma ciência puramente especulativa e contemplativa.

Os atos próprios da sabedoria. Dois tipos de atos intelectuais são continuamente conferidos por Tomás de Aquino à sabedoria: julgar e ordenar:

Ad sapientem pertinet judicare et ordinare.

O que se deve entender com esta fórmula? O “juízo” de que se trata aqui não é um juízo qualquer, mas aquele que a inteligência emite, em última análise, à luz dos princípios supremos: é um juízo de valor ou de ordenação definitivo e absoluto, acima do qual não há mais nada a dizer. “Ordenar” é tomado originariamente em relação a um fio que, no caso da sabedoria, é evidentemente o fim supremo: relacionar tudo a Deus. Mas se este ato implica em toda sua plenitude uma ordenação efetiva, com intervenção das potências da ação, pode ser também conduzido à simples consideração intelectual da ordem existente. Existe, sem dúvida, também neste caso, ordenação, mas somente para o espírito. E é neste sentido restrito que convém entender a atividade ordenadora da metafísica que é, nós o sabemos, puramente especulativa. Em todos os casos, é ao juízo e à ordenação suprema de Deus que se deve referir.

Excelência da sabedoria. Para Tomás de Aquino, a excelência de uma virtude depende principalmente da perfeição do seu objeto. Portanto, a sabedoria, que considera a causa mais elevada de todas, Deus, e que julga todas as coisas a partir desta causa, é a mais excelente das virtudes. Deve-se aduzir que, em razão da superioridade do seu ponto de vista, a sabedoria tem uma função de juízo e de ordenação a exercer em relação às outras virtudes intelectuais, que se encontram assim subordinadas a ela (Ia IIae, q. 66, a. 5) . De nada adianta objetar (ibid., ad 3) que podemos ter um conhecimento mais perfeito das coisas humanas do que das coisas divinas; é verdade, mas não é preferível conhecer poucas coisas das mais nobres, do que conhecer bastante das realidades inferiores?

Aristóteles que não ignorou, ainda que este ponto tenha permanecido nele dentro de uma certa obscuridade, que a filosofia devia sua excelência à altura de seus princípios (ela é virtude divina e tem um objeto divino), compraz-se de preferência em fazer valer suas prerrogativas de liberdade: “Assim como chamamos homem livre aquele que é para ele mesmo seu fim e não é o fim de um outro, assim esta ciência é também a única de todas as ciências que é livre, pois somente ela é seu próprio fim. É portanto, com boas razões, que se poderia estimar mais do que humana a posse da filosofia” (Metaf., A, c. 2) . No sentido mais elevado da palavra e com toda a superioridade que isto lhe confere, o sábio é um homem livre.

Considerando as coisas do ponto de vista do proveito que ela pode nos obter, Tomás de Aquino, no Contra Gentiles (I, c. 2) engrandece assim o estudo da sabedoria, “a mais perfeita de todas, pois quanto mais o homem se dá ao estudo da sabedoria, mais toma parte na beatitude verdadeira… a mais sublime; pois é por ela, sobretudo, que o homem acede à semelhança com Deus que tudo fez com sabedoria (Salmo 103, 24) . . . a mais útil, pelo fato de que pela sabedoria chega-se ao reino da imortalidade . . . ou mais agradável pois seu comércio não possui amargor, nem sua comensalidade tristeza, mas satisfação e alegria (Sabedoria, VIII, 16)”. Este elogio, onde desponta o entusiasmo do Doutor angélico, não é evidentemente integral senão quanto à sabedoria submetida à revelação, mas pode ser aplicado, na devida proporção, à sabedoria metafísica, o mais excelente dos saberes propriamente humanos.

SEGUE: SER