Fulgurações da História

Nicolau de Cusa — A VISÃO DE DEUS
Excertos do Prefácio de Miguel Baptista Pereira, da edição portuguesa
Pensar é também rememorar e com outros partilhar a história do pensamento essencial, experienciando no esforço da ascensão o advento do antigo e sempre novo, que, sob o nome de physis, de logos ou de Ser, se retoma com originalidade, novidade e sem repetição inerte, une e diferencia, é mostração e reserva, história e mais que história, passado e potencial de futuro, presença e ausência, proximidade e distância, mesmidade e diferença. A arque-o-logia filosófica torna-se ponto de convergência da ana-logia, da hetero-logia e da dia-logia. A irrupção do logos inaugura diferenças epocais e individuais, que se podem traduzir pelo termo leibniziano «fulguração», de que se apoderou a Biologia do séc. XX para significar os saltos qualitativos imprevisíveis da evolução, com especial relevo para o aparecimento da consciência e da cultura humanas. A Ontologia Contemporânea já procurou inscrever no cerne do Ser a trajectória da libertação progressiva de uma essência para outra com grau superior de perfeição, pois as espécies novas emanam da plenitude envolvente do Ser, desde o início latente como força fulgurante e realizadora nos passos surpreendentes da evolução. Para esta leitura da evolução, jamais se realiza totalmente nas fulgurações dos sendos a plenitude do Ser, que permanece sempre preso e limitado pela sucessão dos saltos qualitativos de novas essências. Se espécies animais permaneceram praticamente imutáveis durante milhões de anos, o Homo Sapiens, velho pelo menos de cem mil anos, criou a primeira grande cultura com tradição escrita há cerca de seis mil anos, apesar de haver instrumentos fabricados pelo homem com dois milhões de anos, obras de arte com trinta mil anos e agricultura e criação de gado com dez mil. Comparada com estes números, a moderna civilização tecnológica apresenta o tempo contraído de trezentos anos mas suficiente para nos situar no limiar do holocausto. Nas grandes culturas, que se estendem, normalmente, pelo espaço de três mil anos como a do Egito Antigo, a Hindú, a Chinesa e a nossa Greco-Latina e Europeia, há fenômenos epocais, surpreendentes e novos, marcados por criações e descobertas originais. Há transformações duradouras na cultura, novos continentes abertos não só na economia, na técnica e na grandeza do espaço mas também na compreensão de si mesmo, que são as grandes fulgurações culturais. A maior viragem na compreensão de si mesmo antes da Modernidade precedeu já a quinta centúria antes de Cristo com a nova experiência do profeta judeu, da filosofia grega, de Zoroasto e dos Upanixades, de Buda, do Taoismo e da moral política de Confúcio. Pelo que tange a tradição grega, fulgem nessa altura os três grandes conceitos, que ainda hoje urdem a compreensão do Iluminismo: a teoria, a moral política e a arte. Estas três fulgurações, ao mesmo tempo gregas e modernas, destacadas do fundo comum religioso, isolaram-se no seu perfeccionismo insular e este cisma feriu os seus motivos orientadores — o verdadeiro, o bem, o belo e o sagrado, que, em vez de quatro modos centrípetos de aparecimento, se ignoraram mutuamente na estranheza da sua autonomia. Se as crises, em sentido negativo, significam interrupções do curso histórico normal, são fulgurações as crises em sentido positivo, que, à maneira de relâmpagos, rasgam caminhos inéditos e inauguram novos períodos históricos. Tais fulgurações tecem o tempo cairológico, heterogéneo e intensivo, em que acontecem os processos velozes de sínteses originais de linhas diferentes de desenvolvimento, que, em circunstâncias normais, se arrastariam por séculos. Sem os conteúdos originais das fulgurações da história, tudo se reduziria à inércia da replicação e da repetição insípidas. Mudanças extensas e profundas são, para Arnold Toynbee, tempos perturbadores na vida de uma civilização, em que as instituições, os movimentos e as capacidades, que foram outrora centros irradiadores de cultura ou de civilização, invertem os papéis nas novas condições e suscitam mais problemas do que soluções, ameaçando a força e a integridade da sua matriz cultural. Não se abre, porém, como única saída a porta estreita da decadência spengleriana mas há possibilidades de transformação da cultura precedente, v.g., do Helenismo tardio ou do outono cultural da Idade Média em sínteses e combinações originais com centros de criação diferentes e diversamente situados.