Fénelon Razão Humana

Fénelon — Tratado da Existência de Deus
Excertos de “O Tema do Homem” de Julián Marías
A RAZÃO HUMANA

Na verdade minha razão está em mim, pois é mister que ininterruptamente entre em mim mesmo para encontrá-la; mas a razão superior que me corrige em caso de necessidade, e que eu consulto, não é minha, e não faz parte de mim mesmo. Essa regra é perfeita e imutável; eu sou mutante e imperfeito. Quando me equivoco, não perde sua retidão; quando me desengano, não é ela que volta a seu fim; é ela que, sem nunca se haver separado, tem sobre mim autoridade para chamar-se e fazer-me voltar; é um mestre interior, que me faz calar, que me faz falar, que me faz duvidar, que me faz reconhecer meus erros ou confirmar meus juízos; escutando-o, eu meu instruo; escutando-me a mim mesmo, eu me extravio. Este mestre está em todas as partes; sua voz deixa-se ouvir de ,um extremo a outro do universo, por todos os homens como por mim. Enquanto me corrige na França, corrige a outros homens na China, no Japão, no México e no Peru, mediante os mesmos princípios.

Dois homens que nunca se viram antes, que nunca ouviram falar um de outro, e que nunca tiveram relação com nenhum outro homem que haja podido dar-lhes noções comuns, falam nos dois extremos da terra acerca de certo número de verdades, como se estivessem combinados. Sabe-se infalivelmente de antemão em um hemisfério o que se responderá em outro acerca dessas verdades. Os homens de todos os países e de todos os tempos, qualquer que seja a educação que hajam recebido, sentem-se invencivelmente submetidos a pensar e falar a mesma coisa. O mestre que nos ensina sem cessar faz-nos a todos pensar do mesmo modo. Ao apressar-nos a julgar, sem escutar sua voz desconfiando de nós mesmos, pensamos e dizemos sonhos cheios de extravagâncias.

Assim, o que mais parece nosso e o profundo de nós mesmos, isto é, nossa razão, é o que nos é menos próprio e que se deve ter por mais de empréstimo. Recebemos sem cessar e todo o momento uma razão superior a nós, como respiramos sem cessar o ar, que é um corpo estranho, ou como vemos incessantemente todos os objetos próximos a nós à luz do sol, cujos raios são corpos estranhos a nossos olhos. (…)

Eis pois duas razões que encontro em mim: uma, é eu mesmo; a outra, está acima de mim. A que é eu, é muito imperfeita, cheia de prevenção, precipitada, sujeita a extraviar-se, mutante, obstinada, ignorante e limitada; por último, sempre que possui algo é de empréstimo. A outra é comum a todos os homens, superior a eles; é perfeita, eterna, imutável, sempre disposta a comunicar-se em todos os lugares, a encaminhar todos os espíritos que se equivocam; finalmente, jamais capaz de esgotar-se ou de dividir-se, embora se dê a todos os que a querem. Onde está essa razão perfeita, que está tão próxima a mim e é tão diferente de mim? Onde está? É mister que seja algo real; pois o nada não pode ser perfeito, nem aperfeiçoar as naturezas imperfeitas. Onde está essa razão suprema? Não é o Deus que procuro?

(Traité de l’existence de Dieu, parte I, cap. IV, art. II, § III.)