Fénelon Homem Corporal

Fénelon — Tratado da Existência de Deus
Excertos de “O Tema do Homem” de Julián Marías
O HOMEM CORPORAL

Não nos detenhamos mais nos animais inferiores ao homem: já é tempo de estudar o fundo do homem mesmo, para descobrir nele aquele de quem se diz que é imagem. Não conheço em toda a natureza mais que duas classes de seres: os que têm conhecimento e os que não o têm. O homem reúne em si estes dois modos de ser: tem um corpo como os entes corpóreos mais inanimados; tem um espírito, isto é, um pensamento mediante o qual se conhece e se dá conta do que há a sua volta. Se é certo que há um primeiro ente que tirou todos os demais do nada, o homem é verdadeiramente sua imagem; pois, como ele, reúne em sua natureza quanta perfeição real há nesses dois diversos modos de ser; mas a imagem não é mais que uma imagem, não pode ser mais que uma sombra do verdadeiro ente perfeito.

Comecemos o estudo do homem pela consideração de seu corpo. Não sei — dizia uma mãe a seus filhos, na Sagrada Escritura — como vos formastes em meio seio. Com efeito, não é a sabedoria dos pais que forma uma obra tão complexa e tão regular; não têm nenhuma parte nesta habilidade. Deixemo-lo pois, e elevemo-nos mais alto.

O corpo foi amassado com barro, mas admiremos a mão que o modelou. O selo do operário está impresso em sua obra; parece haver-se comprazido em fazer uma obra-prima com uma matéria tão vil. Fixemos o olhar neste corpo, onde os ossos sustém as carnes que os envolvem; os nervos que estão tensos nele dão-lhe sua força, e os músculos, onde os nervos se entrelaçam, entumecendo-se ou alongando-se fazem os movimentos mais justos e regulares. Os ossos interrompem-se em determinados pontos; têm junturas onde se encaixam uns nos outros, e estão unidos por nervos e tendões. Cícero admira com razão o belo artifício que enlaça esses ossos. Que há mais flexível para todos os diversos movimentos? Porém, que há mais firme e mais duradouro?

Inclusive depois que um corpo morreu e suas partes estão separadas pela corrupção, veem-se ainda essas junturas e essas uniões que resistem à destruição. Assim esta máquina está ereta ou dobrada, rígida ou flexível, como se quiser. Do cérebro, que é a origem de todos os nervos, partem os espíritos. São tão sutis, que não se os pode ver, e no entanto tão reais e de uma ação tão enérgica, que realizam todos os movimentos da máquina e lhe dão toda sua força. Esses espíritos são enviados em um só instante até as extremidades dos membros: tanto fluem lenta e uniformemente, como possuem, segundo as necessidades, uma impetuosidade irregular, e variam até o infinito as posições, os gestos e as demais ações do corpo.

Consideremos esta carne: está recoberta em certos lugares por uma pele macia e delicada para adorno do corpo. Tirando-se esta pele, que torna o objeto tão agradável e de colorido tão suave, o mesmo objeto pareceria espantoso e horrorizaria. Em outros lugares esta mesma pele é mais dura e mais grossa, para resistir às fadigas dessas partes. (…) Essa pele está perfurada em todos os pontos como um crivo; mas esses furos, que se chamam poros, são insensíveis. O suor e a transpiração exalam-se por esses poros, mas o sangue nunca escapa por eles. Essa pele tem toda a delicadeza necessária para ser transparente e para dar ao rosto um colorido vivo, suave e gracioso. Se a pele fosse menos compacta e menos unida, o rosto pareceria sangrante e como que desolado. Quem soube temperar e misturar essas cores para fazer uma carnação tão bela, que os pintores admiram e só podem imitar imperfeitamente? (…)

É certo que as partes internas do homem não são agradáveis à vista, como o são as exteriores; mas observai que não foram feitas para serem vistas. Inclusive era preciso, segundo o fim da arte, que não se as pudesse descobrir sem horror; e que assim um homem não pudesse descobri-las e abrir essa máquina em outro homem sem uma violenta repugnância. Este horror prepara a compaixão e a humanidade nos corações, quando um homem vê outro que está ferido. Acrescentai, com Santo Agostinho, que há nessas partes internas uma proporção, uma ordem e uma habilidade que encantam ainda mais ao espírito atento do que a beleza exterior poderia agradar aos olhos do corpo. Este interior do homem, ao mesmo tempo tão horrível e tão admirável, é precisamente como deve ser para mostrar um barro trabalhado por mão divina. Vê-se nele ao mesmo tempo a fragilidade da criatura e a arte do criador. (…)

O rosto é a parte da cabeça que se chama dianteira, onde estão reunidas as principais sensações com uma ordem e uma proporção que o fazem muito belo, a menos que algum acidente altere uma obra tão regular. Os dois olhos são iguais, colocados para o centro e aos lados da cabeça, a fim de que possam descobrir sem esforço de longe, à direita e à esquerda, todos os objetos estranhos, e possam velar comodamente pela segurança de todas as partes do corpo. A exata simetria com que estão situados serve de adorno ao rosto. Aquele que os fez, neles acendeu não sei que chama celeste, à qual nada se assemelha em todo o resto da natureza. Estes olhos são como espelhos em que se desenham sucessivamente e sem confusão, no fundo da retina, todos os objetos do mundo inteiro, para que o que pensa no homem possa vê-los nesses espelhos. (…)

Quem grava em meus olhos, em um instante, o céu, o mar, a terra, situados em uma distância quase infinita? Como se podem ordenar e se distinguirem em um órgão tão pequeno as imagens fiéis de todos os objetos do universo, desde o sol até os átomos? A substância do cérebro, que conserva com ordem representações tão ingênuas de tantos objetos que nos impressionaram desde que estamos no mundo, não constituiu o mais assombroso prodígio?

Admira-se com razão a invenção dos livros, onde se conserva a história de tantos fatos e se reúnem tantos pensamentos; mas, que comparação se pode fazer entre o livro mais maravilhoso e o cérebro de um homem sábio? Sem dúvida, este cérebro é uma coleção infinitamente mais preciosa e de mais feliz invenção que esse livro. Nesse pequeno depósito se encontram de pronto todas as imagens que se necessitam. Chama-se-lhes: elas vêm; despede-se-lhes: voltam a submergir-se não se onde, e desaparecem deixando seu lugar para outras. A imaginação fecha-se e abre-se como um livro: folheiam-se, por assim dizer, suas páginas; passa-se bruscamente de um extremo a outro; inclusive, possui-se algumas espécies de índices na memória, para indicar os lugares em que se encontram certas imagens remotas. Estes caracteres inumeráveis, que a mente do homem lê interiormente com tanta rapidez, não deixam nenhuma marca diferente em um cérebro que se abra. Este livro admirável nada mais é que uma substância macia, ou uma espécie de madeixa composta de fios sedosos e entrelaçados. Que não soube ocultar nesta espécie de barro, que parece tão informe, imagens tão preciosas e ordenadas com uma arte tão esmerada?

Tal é o corpo do homem, em traços gerais. Não entro no pormenor da anatomia, pois meu propósito é só descobrir a arte que há na natureza, a simples vista, sem nenhuma ciência. O corpo do homem poderia certamente ser muito maior ou muito menor. Se, por exemplo, tivesse apenas um pé de altura, seria ameaçado pela maioria dos animais, que o esmagariam sob seus pés. Se fosse tão alto como os maiores campanários, um pequeno número de homens consumiria em poucos dias todos os alimentos de um país; não poderiam encontrar nem cavalos nem outros animais de carga que os pudessem levá-los nem puxá-los em nenhuma máquina de rodas; não poderiam encontrar materiais suficientes para construir casas proporcionadas a seu tamanho; só poderia haver um pequeno número de homens na terra, e seriam carentes da maior parte das comodidades.

Quem regulou o tamanho do homem segundo uma medida precisa? Quem regulou o tamanho de todos os outros animais em proporção com o do homem? O homem é o único de todos os animais que se levanta sobre seus pés. Tem por isso uma nobreza e uma majestade que o distinguem, inclusive pelo exterior, de tudo o que vive na terra; não só sua figura é a mais nobre, como além disso é o mais forte e mais hábil de todos os animais, em proporção com seu tamanho.

Examinando-se de perto o peso e a massa da maioria dos animais mais terríveis, encontrar-se-á que têm mais matéria que o corpo de um homem; e no entanto um homem vigoroso tem mais força corporal que a maioria dos animais ferozes: só são temíveis para ele por seus dentes e suas garras. Mas o homem, que não possui em seus membros armas naturais tão fortes, têm mão cuja habilidade para fazer armas sobrepuja a tudo o que a natureza deu às feras. Desse modo, o homem atravessa com seus dardos ou faz cair em seus laços e acorrenta os animais mais fortes e furiosos: sabe inclusive domesticá-los em seu cativeiro e zombar deles a seu bel prazer; faz-se afagar pelos leões e pelos tigres; monta nos elefantes.

(Traité de l’existence de Dieu, parte I, cap. IV, art. I.)