Exemplarismo de Boaventura

JOAQUIM CERQUEIRA GONÇALVES — HOMEM E MUNDO EM SÃO BOAVENTURA

IV — O exemplarismo — Porque a realidade é inteligível e obra duma Inteligência, vai ser possível ao homem falar de modelos e condutas com valor universal, ou seja, existe um plano natural para as coisas e uma norma para o comportamento. Definir estes será a mais decidida forma de acabar com os fatalismos e, simultaneamente, com as arbitrariedades. Tentar guindar-se a esse plano, eis a tarefa mais genuína de Boaventura, sendo o exemplarismo, ou metafísica exemplarista, o nome por que é traduzido esse esforço na história da filosofia.

Uma advertência, à guisa de parêntese, caracterizaria, em Boaventura, essa atividade de inconfundível alcance filosófico: não será eliminada, antes sugerida, a possibilidade de outros planos, como o sobrenatural e místico, pois «la mística bonaventuriana está fundada sobre un realismo metafísico tan sorprendente y al mismo tiempo tan Cristiano, que entre la metafísica y la mística no se experimenta rotura alguna, sino suave continuidad, resultando gananciosas una y otra.» Seria difícil conseguir dizer tanto em tão poucas palavras, acrescentando da nossa parte que, para o Doutor Seráfico, falar de valores místicos isolados da natural constituição humana só viria reduzir ou tornar mesmo incompreensível uma dimensão essencial à própria vida, como é a mística.

Confiança na ordem da realidade não era atitude artificial do homem medievo, nem sequer legado da filosofia grega e, muito menos, entusiasmo episódico resultante da presença da nova mentalidade criada pelo aristotelismo.

Uma limitada interpretação do pensamento medieval, vendo-o em função do tomismo ou concedendo-lhe direito de cidadania filosófica apenas no período escolástico, terá grande dificuldade em compreender a especulação bonaventuriana, também ela voltada para os valores naturais. E. Gilson denunciava já esta perspectiva: «Quel que soit le point de doctrine que l’on considère, on aboutit à cette conclusion que si le Commentaire de Saint Bonaventure donne l’impression d’un thomisme hésitant qui s’arrêterait le plus souvent après s’être mis en bonne voie, c’est parce qu’on le juge continuellement du point de vue d’une philosophie qui n’est pas la sienne.» (Étienne Gilson, La philosophie de saint Bonaventure, p. 15)

A inteligibilidade das coisas era consequência natural da arraigada crença em um Ser essencialmente inteligente. Tal luz orientará a indagação metafísica medieval. Só quando esta for abalada é que uma invasão de pessimismo atingirá o pensamento dessa época, cujas repercussões foram mais intensamente experimentadas no período renascentista.

Mas, se não estava ausente da consciência do filósofo medieval o sentido da natureza, esta podia, no entanto, encarar-se de modo aberto ou fechado, sendo então preferível aludir-se a uma natureza mais ou menos aristotélica, em vez de se falar de uma abertura aos valores naturais. Estes sempre marcaram o pensamento cristão, mas em um sentido que o naturalismo cerrado do Estagirita não poderia acompanhar.

Com efeito, a natureza pode definir-se através de perspectivas diversas: os princípios intrínsecos (principia constituentia), a forma ou ainda a forma completiva ou perfectiva.

Este tríplice modo de considerar a natureza pode reduzir-se a um duplo critério de interpretação da mesma, ou seja, vê-la em si mesma ou relativamente à sua tendência fundamental: «(…) natura dicitur dupliciter: vel naturalis cursus, vel naturalis obedientiae creaturae.» Essa forma última a que aspira a criatura pode ser uma forma sobrenatural, como dom conferido à natureza. Não seria até contraditório chamar-lhe natural, se identificarmos a ordem natural com a ordem criada. De facto, a graça é também uma forma criada, pois só ela, e não Deus, pode ser forma das criaturas. A forma última considera-se sobrenatural enquanto a sua existência não decorre somente das forças naturais.

O horizonte sobrenatural, que não é de modo nenhum artificial, não podia ser abrangido pelo conceito aristotélico de natureza, tão entusiasticamente recebido por alguns meios universitários do tempo.

Firme nos valores naturais, mas aberto às exigências e tendências dos mesmos, Boaventura situa-se no seu plano preferido, onde todas as perspectivas se podem encontrar e fundar, em plena metafísica exemplarista. O esforço da atividade redutiva (reductio) aí o conduzirá.

Uma das obras mais célebres de Boaventura é certamente a De reductione artium ad theologiam, título posteriormente aplicado mas que, sendo de autoria alheia, não deixa de traduzir uma das coordenadas essenciais do espírito do autor. Não saberemos deslindar os motivos que levaram a posteridade a preferir este a outros títulos ; não ignoramos, porém, o carácter essencialmente redutivo do pensamento, sobretudo, na sua expressão filosófica. O facto de dedicar expressamente uma obra à redução, indica bem o peso que este tema exercia sobre o espírito de Boaventura.

Para ele, a redução à unidade terá um alcance ontológico e gnoseológico, unificando, portanto, a realidade e os saberes.

O conceito de unidade será fundamental no pensamento do Doutor Seráfico, como bem notou A. Zigrossi. Porque «idem est principium essendi et cognoscendi» assim também a realidade será dinamizada por essa exigência da unidade, tal como o pensamento diante da diversidade do saber. E. Gilson realça o valor do esforço de unidade da ciência que a filosofia moderna herdou da teologia: «Or, cet idéal que la raison moderne s’efforcera d’atteindre, jusqu’à ce qu’un Auguste Comte démontre à nouveau que l’unification des sciences n’est pas possible du point de vue des sciences mêmes, ce n’est pas la raison qui l’a d’abord conçu; elle l’a reçu, hérité de la théologie, et d’une théologie qui savait déjà que l’unification parfaite vers laquelle tend la connaissance rationelle n’est pas possible du point de vue de la seule raison.» (Étienne Gilson, op. cit., p. 99)

Se todo o pensamento é redutivo, a actividade metafísica sê-lo-á de forma eminente. Aristóteles diria que esta ciência se propõe atingir as primeiras causas, e Boaventura não dissente do Estagirita ao afirmar «necesse est, quod omnia reducantur ad unum principium», não obstante as muitas espécies de redução susceptíveis de se distinguirem na sua obra.

Mas a redução bonaventuriana é incomparavelmente mais intensa do que a aristotélica, visto o Filósofo grego, na opinião do santo medieval, não ascender a um princípio verdadeiramente primeiro, por causa da ausência da doutrina das ideias.

A metafísica, onde a redução é exercida em alto grau, está no cerne da filosofia do Doutor Seráfico, pois só a esse nível se poderá falar de radicalidade do pensamento.

Mas, porque mais intensa a redução, será também mais completa a metafísica de Boaventura, comparada com a mesma actividade exercida pelos autores gregos, que não explicaram a realidade através de uma causa «simpliciter prima et simplici-ter generalissima». Além disso, sobretudo Aristóteles, ocuparam-se exclusivamente da causa primeira e última, negligenciando o meio, ou seja, a causa exemplar, essencial a uma compreensão tanto quanto possível perfeita. Efectivamente, a causa primeira deverá ser simultaneamente causa essendi, ratio intelligendi et ordo vivendi. Falar do princípio e fim da criatura, sem justificar e fundamentar o seu modo de ser, só possível na análise da sua causa exemplar, não constituiria um verdadeiro saber. Por isso, a metafísica é a ciência «(…) circa cognitionem omnium entium, quae reducit ad unum principium, a quo exierunt secundum rationes ideales sive ad Deum in quantum principium, finis et exemplar; licet inter metaphysicos de huius-modi rationibus idealibus nonnulla fuerit controvérsia.»

As quatro causas assinaladas por Aristóteles, como fundamentais em toda a questão filosófica, teriam logo, ainda em seu autor, a sorte de todo o múltiplo, a tentativa ou a necessidade de redução a uma — ou a algumas — delas. Boaventura considera imprescindível uma tríplice causalidade, mas as suas preferências e esforços dirigem-se para a causa exemplar. Só com ela será possível falar de um verdadeiro estatuto qualitativo da realidade finita e de uma acção providencial de Deus sobre o mundo. Ficar-se no princípio e no fim significaria nada dizer sobre as criaturas e, consequentemente, sobre o seu Autor.

Deus será então a causa exemplar e também eficiente e final: «(…) a quo omne bonum originaliter progreditur, per quem omne bonum exemplariter producitur.»

J.-M. Bissen, devotado intérprete do exemplarismo bonaventuriano, define-o nos seguintes termos: «(•••) l’exemplarisme sera donc, avant tout, la doctrine qui enseigne comment Dieu est le prototype de tout ce qui existe, et la façon dont les choses sont en lui.»

Esta doutrina não é nova na história da filosofia, indiscutivelmente entre os cristãos e, de forma atenuada, entre os pensadores gregos. Boaventura, se, por um lado, a desconhece nestes, encontra as suas raízes mais facilmente em Platão, o filósofo da sabedoria, do que em Aristóteles, o cultor da ciência.

Se a doutrina das ideias não é o exemplarismo, como demonstraremos, os filósofos das ideias anteviram fundamentalmente a questão que só a metafísica exemplarista resolveria de modo satisfatório.

Os filósofos gregos e medievais reclamaram unanimemente para a ciência as características de necessidade e de eternidade. Sem elas não seria possível falar-se da imutabilidade da verdade e, por consequência, inúteis seriam os esforços para elaborar um estatuto natural. Mas essa necessidade e imutabilidade só poderiam encontrar fundamentais garantias em um plano também necessário e eterno.

Se esta exigência é essencial ao conhecimento, está formulado o problema das ideias e está também suscitada urna magna quaestio, a da relação entre as ideias e a realidade mutável, e ainda outra, não menos importante, a da própria unidade e diversidade das ideias. Consciente das dificuldades, Platão dedicou-lhes uma boa parte da sua obra, mas a resposta desejada é frequentemente aporética. Com a questão em aberto, surgiu um dos temas mais fecundos na história da filosofia.
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A figura de Plotino merece uma referência, ao ser analisado o capítulo das ideias. Com a Inteligência, segunda hipóstase e sede das ideias, tentou conciliar a realidade do Uno inefável, onde não pode falar-se de distinções, e o diverso do mundo sensível. A imutável verdade das coisas estaria assim salvaguardada sem lesar as prerrogativas da verdadeira Unidade.

Os cristãos frequentemente associaram ao seu esquema criacionista a solução plotiniana, desconfiando, porém, do carácter de intermediário que a Inteligência representava.

É eriçada de dificuldades a via de acesso a uma justa análise da relação neoplatonismo-cristianismo. Este viu naquele mais e menos do que ele lhe oferecia, ora interpretando-o com excessiva benignidade e generosidade, ora apropriando-se de terminologias e esquemas com uma surpreendente liberdade.

Vejamos um exemplo, de entre tantos possíveis, da harmonia verbal e esquemática, disfarçando duas mundividências irredutíveis : «Sub reductione quasi cuiusdam circuli intelligibilis describit hic Christus suum egressum a Patre per aeternam generationem, suum ingressum in mundum per carnis assuntionem, suum decessum de mundo per crucis passionem, suum regressum ad caelum per resurrectionem et ascensionem.»

As vicissitudes dos textos e as perturbações das circunstâncias podem estar na origem de uma falsa interpretação do neoplatonismo: «Notre conclusion rejoindra une affirmation de M. Gilson. La pensée chrétienne n’a rencontré du platonisme ou du néoplatonisme que des formes exotériques, sinon des interprétations inexactes, qu’elle ait cru y reconnaître d’ailleurs un allié ou un ennemi. Sa confrontation avec ce qu’il y a de plus décisif dans ces doctrines est encore à faire pour la plus grande partie.»

O tempo poderá ser portador de belas surpresas relativamente a uma possível consonância entre neoplatonismo e cristianismo. No entanto, a jogar com razões intrínsecas de uma e outra mundividência, a aproximação será difícil. Muitas vezes, as afinidades resultam apenas de ambientes comuns que estimularam interrogações semelhantes. (A. Villalmonte, El Argumento de “razones necessarias” en San Buenaventura, p. 10)

Escoto Eriúgena representa talvez a melhor tentativa de conciliação dos dois esquemas, não obstante os equívocos, ao menos de linguagem, com largas consequências na história da filosofia.

Mas a especulação cristã poderia continuar o tema das ideias, partindo de Santo Agostinho, o qual também aqui havia dado a palavra de ordem.

É impossível uma filosofia sem ideias, mas estas estão em Deus. Firme nas articulações essenciais, o grande mestre do pensamento medieval deixaria para outros a formulação teórica de uma verdade que se lhe afigurava óbvia.

Boaventura, ainda nesta questão, sentirá as mesmas exigências de Agostinho, adensadas com os graves perigos que corria o homem de seu tempo, sintetizados nos três erros já referidos. Entre estes, será de consequências mais imediatas a negação da providência, sem a qual se torna impossível compreender também a liberdade humana. O santo franciscano sabe que está aqui em jogo não só a filosofia de então, mas todo o pensamento grego e árabe, estes de tendências fatalistas, pelo facto de, segundo ele, negligenciarem o exemplarismo.

Com efeito, se tudo resulta de um primeiro princípio e se este não age inteligente e livremente, o determinismo dos efeitos será inevitável. Ao contrário do que se poderia imaginar, será ainda a Causa primeira, se realmente for exigida, a salvaguarda ao mesmo tempo da razão e da liberdade.

Todavia, o facto de a filosofia platônica ser uma sabedoria, porque «Ille enim principaliter aspiciebat ad superiora (…)», não é suficiente motivo para ter jus ao título de exemplarista.

Boaventura, sempre muito generoso na interpretação das doutrinas alheias, está muito convencido da originalidade da metafísica exemplarista, só plenamente compreensível no cristianismo. É pelo menos incompleta a teoria das ideias de Platão.

Primeiramente, se a doutrina exemplarista dirige particular atenção à causa exemplar, nem por isso descura as causas eficiente e final, pois, em um esquema criacionista, deverão encontrar-se todas simultaneamente presentes. Ora, no sistema platônico, não era clara a relação entre essas três causas, sendo mesmo discutível o valor da causa eficiente.

Depois, o sistema das ideias encontra plena unidade no Verbo, onde tudo permanece exemplarmente, com um realismo que excede o resultado de uma consideração lógica. Se não é clara a terminologia bonaventuriana relativa à distinção das ideias em Deus, a doutrina expressionista não deixa dúvidas sobre o seu valor e realidade, que ultrapassam a simples perspectiva da nossa razão.

A doutrina das ideias vem resolver muitas dificuldades em filosofia, mas são ainda mais numerosas as questões por ela provocadas. A maior é certamente a da sua distinção, comprometendo, à primeira vista, a unidade divina. A história da filosofia é suficientemente elucidativa a este respeito e quase poderíamos classificar o pensamento de um autor através da doutrina da distinção das ideias. S. Boaventura, como estamos a expor, não prescinde das ideias e, no entanto, parece reduzir a distinção das mesmas a uma simples consideração racional ou mesmo verbal.

Terá de fazer o equilíbrio entre a unidade de Deus, a diversidade das coisas e a unidade e a diversidade das ideias. Com efeito, se insiste na unidade divina, não pode, todavia, reduzir a diversidade das ideias nem à relação com as coisas, visto não depender destas o conhecimento de Deus, nem à consideração da nossa mente, pois, de outro modo, seria anulado todo o valor metafísico das mesmas ideias.

João Duns Escoto, pouco depois, sentir-se-á mais à vontade perante o mesmo problema, dispondo já de um trabalhado conceito de distinção, a. formal, não simplesmente lógica ou física, mas metafísica.

Toda a realidade criada tem a sua respectiva ideia em Deus, que tudo conhece e tudo cria segundo essa razão exemplar. A distinção das ideias em Deus, uma vez mais, não é um artifício da razão humana, depois de registada a existência de coisas distintas. Se a criatura pode ser escada para ascender a Deus, ela aí preexiste, como ideia exemplar, e é real, antes mesmo de ser criada, tal como a infinidade dos possíveis. Deus não precisa das coisas para as conhecer, mas, porque as conhece e quer, são elas criadas.

Como se vê, não obstante todo o entusiasmo com a sabedoria platônica, esta necessitava de essenciais esclarecimentos, que deviam incidir sobre a relação das três causas, a fundamentação da unidade das ideias no Verbo e a realidade das ideias, irredutível à simples consideração formal.

Se o diálogo com Platão obriga Boaventura a esclarecimentos complementares relativamente a um mundo já admitido por aquele filósofo grego, embora transformado por este pensador cristão, o contacto com a mundividência aristotélica obriga o Doutor Seráfico não só a transformá-la, como a acrescentar-lhe um plano que está ausente da filosofia do Estagirita.

Sem se discutir no momento a fidelidade de interpretação do aristotelismo por Boaventura “, urge, porém, afirmar que, para o Doutor Seráfico, visto a metafísica dever ser exemplarista, a do Estagirita não tem direito a tal nome, transcendendo com muita dificuldade o nível da física.

Frequentemente dialoga Boaventura, de forma implícita ou explícita, com a obra de Aristóteles, acolhendo, retificando ou radicalizando o pensamento do Estagirita. Para já, importa salientar que o mestre franciscano sente a necessidade de superar uma filosofia da forma, de transformar a teoria ato-potência e, finalmente, de ultrapassar a noção de Deus como Princípio de movimento.

A filosofia de Aristóteles, como nenhuma outra, via a natureza nos seus princípios intrínsecos, não na sua finalidade última e, menos ainda, como vestígio de Deus. Quedar-se aí, significaria renunciar às radicais exigências da razão e fechar-se à metafísica exemplarista, a qual analisa a conexão entre a realidade criada e o seu exemplar, em Deus, salvaguardando desse modo o estatuto qualitativo para o mundo. Dificilmente o Estagirita poderia evitar os três erros que o exemplarismo procura suprimir.

Não se pretendendo, embora, organizar um debate sobre o sentido e viabilidade duma metafísica cristã, manda a intensidade do colorido religioso do exemplarismo bonaventuriano que se faça uma última aclaração sobre o seu verdadeiro alcance.

A metafísica exemplarista está marcada por duas verdades reveladas, a criação e a doutrina trinitaria, mas sobretudo por esta última.

Boaventura vai encontrar na Trindade o expoente máximo de seu expressionismo e será em relação a ela que compreenderá também a especulação exemplarista. Assim, e só para lembrar as consequências mais imediatas, tal como a Trindade esgota a riqueza de expressão do ser, os exemplares serão também esgotados na infinita riqueza do Verbo, não sendo as criaturas o princípio de sua distinção, e, muito menos, da existência deles.

Seguidamente, a geração do Verbo, que não lesa a unidade da natureza divina, será também o modelo da unidade de ideias múltiplas.

Por último, mas não sem importância fundamental, a noção cristã de Trindade mostra o que talvez tivesse sido pressentido por Platão, mas sem oferecer clara consciência e viabilidade, ou seja, a urgência de superar o mundo das ideias pela unidade e pessoas divinas.

Estamos bem conscientes da objecção: as verdades da não constituem decisões da razão. Ora, a parte mais trabalhada da metafísica de Boaventura encontra-se com a revelação da Trindade…

Talvez a atividade filosófica seja racional não construindo, mas reconhecendo e aceitando. No seu último apelo, a razão humana vive mais da exigência do que da afirmação. Ou terá de renunciar a pronunciar-se, ou a sua afirmação recorrerá a um modelo, dizendo simultaneamente o que de melhor lhe é possível e que é impossível dizer-se de um modo único.

Boaventura está plenamente consciente das arestas da dificuldade. De entre as realidades conhecidas pelo homem para qualificar o Princípio primeiro, recai sobre o modelo trinitário a mais excelente dignidade. Na linha anselmiana, de Deus deve falar-se sempre altissime e piissime, sendo a Trindade o que mais convém atribuir-se a Deus, tal como é acordado pela razão e pela .

Para o irrecusável problema uno-múltiplo, a nutrir incessantemente a filosofia, o Doutor Seráfico vê no Deus trinitário da revelação cristã o melhor caminho, embora imperfeitamente assumido pela inteligência humana.

A Trindade dará, pois, razão do dinamismo expressionista que alimenta as ideias, da unidade destas no Verbo, e ainda da criação, ao continuar ad extra essa vida interior. Muitas dificuldades da filosofia tradicional encontravam nela fascinante princípio de superação.