O tratado Exegese da Alma, existente apenas na versão copta preservada no Códice II de Nag Hammadi, é uma tradução de um tratado grego original, como é indicado pela terminologia técnica gnóstica preservada com mais frequência em grego. As dez páginas do manuscrito estão em bom estado, exceto por algumas lacunas. O título, dado tanto no início quanto no final do texto, reflete perfeitamente o propósito de seu autor anônimo: oferecer uma interpretação (“exegese”) da história da alma, construída sobre o mito gnóstico de Psique, desde o relato de sua origem celestial e sua queda no mundo até a descrição de seu retorno ao céu. A autora optou por contar esse mito como um conto simbólico, cuja heroína, a alma, é retratada com traços femininos.
A alma, Exegese da Alma conta, tem nome feminino e natureza feminina (tem até útero). Tem forma virginal e andrógina quando está sozinha com seu Pai, mas quando cai em um corpo e ganha vida, se polui com muitos amantes. Os enganos da alma são muitos, e os seus amantes – salteadores e bandidos – tratam-na como uma prostituta. Ela sofre ao perceber que estão se aproveitando indevidamente dela e procura outros amantes. Mas mesmo estes a obrigam a viver com eles e a tornam sua escrava, para sua satisfação sexual. Embora envergonhada, a alma permanece escravizada e submissa; suas moradas são bordéis, seus passos a levam de um mercado a outro. O único presente que recebe de seus amantes é o sêmen poluído, por meio do qual dá à luz filhos doentes e debilitados (127, 19–128, 26).
O cativeiro sexual e psíquico da alma continua, afirma o texto, até o dia em que se torna consciente de sua situação infeliz e se arrepende (128, 26-30). Pede ajuda ao Pai e o lembra da época em que ainda era virgem em seus aposentos de donzela e estava a Seu lado (128, 34–129, 2). Vendo a alma tão desamparada, o Pai considera-a digna da sua misericórdia: faz com que o seu ventre se volte para dentro (131, 19-24) para que a alma recupere o seu próprio carácter feminino. Na verdade, a vida de prostituição mudou a forma natural dos seus órgãos sexuais: “O ventre da alma está voltado para fora como os órgãos sexuais masculinos, que são externos” (131, 25-27). Esse voltar-se para dentro a protege de futuras contaminações sexuais. Mas esta ação não é suficiente para levá-la a reproduzir uma descendência imaculada, por isso o Pai lhe envia do céu um noivo, que é seu irmão, o primogênito da casa do Pai (132, 6–9).
À medida que o noivo desce à alma, ela se purifica da poluição dos adúlteros. Ela se enfeita em uma câmara nupcial, depois de enchê-la de perfume, e ali fica sentada, esperando por seu verdadeiro amante. A ansiedade pela chegada dele combina-se com o medo: ela não se lembra mais de nada dele, assim como havia esquecido tudo da casa do Pai. No entanto, um sonho irá devolver-lhe a memória do amante. O momento em que a noiva e o noivo se encontram novamente é descrito sensualmente, e o amor apaixonado que os une, mesmo que espiritual, é contado em termos mais próprios da relação carnal (132, 9-35). Filhos bons e belos (ou seja, na interpretação alegórica, ideias virtuosas) são o fruto deste casamento (133, 35–134, 3). Finalmente, a alma se regenera e retorna ao seu estado anterior, voltando no final para onde estava no início (134, 6–11).
A característica especial do Exegese da Alma é a forma como narra o mito gnóstico da alma como um romance, deixando de lado a complexa linguagem filosófica e teológica que é típica deste tipo de literatura. Este relato procura explicar a doutrina da gnose de uma forma bastante simples e atraente, para que as metáforas e imagens utilizadas possam ser compreendidas não apenas por filósofos e intelectuais, mas também por leitores comuns (ver Exegese da Alma 131, 31–34; 132, 2–5).
Além disso, a heroína feminina do Exegese da Alma está vestido com o traje de Sophia, cujo mito, conforme relatado de maneira geral por Irineu de Lyon (Contra Heresias 1.1.1–9.5, sobre a doutrina de Ptolomeu, professor da escola de Valentino), é aqui apresentado em uma adaptação literária. O itinerário da alma lembra de perto a própria jornada de Sophia: tendo saído da perfeição do Pleroma, em busca de novas experiências, Sophia passa da devassidão ao arrependimento e, finalmente, é novamente aceita na morada de seu Pai. Este mito, um dos principais blocos de construção da especulação gnóstica, tem sido frequentemente interpretado de forma elaborada na literatura de Nag Hammadi e nos relatos dos pais da igreja. O mito encontra-se no Exegese da Alma uma apresentação fresca e atraente.
[Madeleine Scopello]