O autor desse documento, como já observado, conhecia vários livros do Novo Testamento, mas sua teologia não é nem de longe a do Novo Testamento. A morte, por exemplo, não é, como para Paulo, o salário do pecado, mas o resultado da separação dos sexos (‘ditos’ 71, 78). De fato, lemos, em uma passagem um tanto obscura a respeito das árvores no Paraíso (pl. 122. 1-7), que Adão foi morto; mas esse não é o fruto ‘da primeira desobediência do homem’, nem há qualquer referência ao perdão. A declaração de que a Lei era a árvore, e que ela poderia dar o conhecimento do bem e do mal, mas ainda era incapaz de tornar um homem bom em vez de mau, lembra alguns dos ensinamentos de Paulo, mas não se pode dizer que Felipe mostra qualquer compreensão profunda do Evangelho de Paulo. É ainda mais notável, portanto, que sua discussão sobre a ressurreição da carne (23), se a interpretação sugerida nas notas estiver correta, reflita com tanta precisão a doutrina paulina. Há uma referência à redenção (9), mas ela não é desenvolvida. Não há nenhuma teoria da Expiação, e nenhuma das referências à Cruz sugere que ela tenha qualquer significado salvífico. Em suma, deve-se dizer que o documento dá a impressão de ser o trabalho de alguém que conhece o idioma sem ter se aprofundado muito no conteúdo do pensamento cristão. Nesse aspecto, entretanto, ele talvez tenha sido um homem de seu tempo. O padrão adequado de comparação não é a teologia da Reforma, ou dos últimos Padres, muito menos qualquer teologia de hoje. É a teologia do segundo século. Agora, parece que, de acordo com outras fontes, o ensino de Paulo entrou em uma espécie de eclipse no período pós-apostólico, e é somente com Irineu que uma teologia genuinamente bíblica realmente começa a surgir. Se Felipe de fato pertence ao segundo século, como foi sugerido acima, então uma grande parte de sua importância pode estar precisamente no fato de que ele nos permite ver um homem daquele período lutando, ainda que inadequadamente, com os problemas da vida e do pensamento cristãos.
O fato de ele se considerar um cristão é claro: ele pode contrastar seu estado atual, e o de seus leitores, com o período antes de se tornarem cristãos (6, 102); ele faz uma distinção entre os cristãos e as nações deste mundo (49), e pode distinguir a realidade do nome (59). De fato, vai além, falando de ser não apenas um cristão, mas um Cristo (67, cf. 44). A derivação do nome ‘cristão’ do crisma (95) compartilha com outros escritores do período, enquanto suas condenações da idolatria e do sacrifício também têm seus paralelos. No “dito” 95 desenvolve sua própria teoria da ‘sucessão apostólica’: ‘o Pai ungiu o Filho, o Filho ungiu os Apóstolos e os Apóstolos nos ungiram’.
É de acordo com isso que dá a Jesus um lugar de destaque, mesmo que não seja exatamente o lugar que lhe é dado no Novo Testamento. O Dr. Schenke relaciona vinte e sete ditos que se referem a Jesus, a Cristo ou ao Senhor, e outros seis, pelo menos, podem ser acrescentados, sem mencionar aqueles que se referem ao Filho ou ao Filho do Homem. Cristo é o Homem perfeito (15), a quem o gnóstico deve se revestir (101). Veio “para redimir alguns, para salvar outros, para libertar outros” (9), ou, como é dito em outro lugar, “para reparar a separação” (78). Em vários pontos é contrastado com Adão (por exemplo, 83). ‘Dito’ 72 apresenta uma espécie de Docetismo invertido: a carne que nós mortais possuímos não é a verdadeira carne (e, portanto, como diz 23, não pode herdar o reino de Deus), mas apenas uma semelhança da verdadeira, que é a de Jesus. Se Felipe pode ecoar o Novo Testamento quando fala de “pão do céu” (15), suas especulações sobre a carne e sobre os nomes de Jesus o afastam da doutrina do Novo Testamento. Seu Cristo não vem para salvar o mundo dando sua vida, mas para restaurar as coisas em seus devidos lugares (70) e se tornar o pai de uma prole redimida (74, 120). A libertação vem por meio do conhecimento (cf. 110), não por meio do sacrifício do Calvário.
O mesmo uso da linguagem do Novo Testamento, transposto para outro tom, pode ser visto também em outros pontos. As referências ao Espírito Santo são bastante comuns, mas é difícil ter certeza de quais delas se referem ao Espírito Santo da teologia cristã e quais se referem à Sophia-Achamoth gnóstica, que, como sabemos por Irineu, também era chamada de “Espírito Santo”. As três ‘virtudes teológicas’ de 1 Coríntios xiii são mencionadas, mas infelizmente em um caso, referindo-se à fé e ao amor (45), o texto está danificado; outro (115) faz referência não apenas à fé, esperança e amor, mas também à gnose; e não é pela fé em Cristo que um homem encontra a vida, mas por ‘crer na verdade’ (100. 17). Das referências à ressurreição, duas (21, 90) apresentam a visão condenada nas Epístolas Pastorais, de que para o crente ela já é coisa do passado. Outra, como já observado, é um reflexo preciso da doutrina paulina (23), mas admite interpretação em um sentido gnóstico. Dos outros, 67 não contém mais do que uma alusão passageira, enquanto 63 trata a ressurreição como uma das três possibilidades abertas ao homem: pode se encontrar ou neste mundo ou na ressurreição ou nos ‘lugares do Meio’.
Este mundo é irreal, e os nomes aqui empregados são enganosos (10-n, 63); veio a existir por meio de uma transgressão (99). As únicas realidades verdadeiras são as do “outro éon”. Neste mundo, o homem está sob o domínio dos arcontes, os poderes hostis que procuram prendê-lo a si mesmos para sempre. Aqui está exposto aos ataques de espíritos impuros (61), e sua única saída é sair do mundo para o “descanso” do outro éon. A mesma atitude negativa aparece com relação ao corpo e à carne (cf. 22, 62, 123). A condenação do sacrifício (cf. 14, 50) e da idolatria (84-85) pode parecer mais próxima do ensinamento cristão mais ortodoxo, mas, à luz do que já foi dito, isso também deve ser entendido em termos da irrealidade das coisas deste mundo.