Por que o Evangelho de Felipe, um dos manuscritos mais antigos de uma antiga biblioteca gnóstica descoberta em 1945 em Nag Hammadi, no Egito, é aparentemente um quebra-cabeça? Era necessário ocultar certos ensinamentos já no século II ou III? Será que a “grande igreja” de Roma, precursora da Igreja Católica, já havia começado a rastrear e eliminar ou destruir os escritos cuja doutrina não correspondia exatamente à sua?
Na tradição alquímica, os autores também parecem ter adotado o hábito de intercalar certas frases ou parágrafos para que somente leitores informados pudessem reconhecê-los e para que aqueles que não vissem nenhum significado neles não fossem tentados a distorcê-los ou fazê-los desaparecer. Na realidade, essa abordagem remonta aos tempos antigos, quando os “mistérios” eram divulgados apenas para os iniciados.
A esse respeito, também se diz que a Bíblia tem um significado velado: poderia ser uma versão escrita de um ensinamento secreto transmitido oralmente, e não poderia ser o do homem que Felipe chama de Jesus a seus discípulos mais próximos?
O Evangelho de Felipe é um texto “erudito”, como todos os textos gnósticos, no sentido de que há um jogo sutil entre os significados literais e figurativos de certos termos-chave, entre o significado comum de certas palavras ou proposições e as imagens evocadas e os possíveis significados simbólicos. O autor tampouco deixa de brincar com as inevitáveis contradições aparentes da vida, dia e noite, vida e morte… os chamados “extremos”, ou seja, os aspectos opostos inerentes à dualidade da existência terrena, simbolizados nas primeiras páginas da Bíblia na forma de trevas e luz, água e terra, e a árvore do conhecimento do bem e do mal. O pensamento gnóstico brinca facilmente com todos esses opostos, bem como com os diferentes significados de um mesmo conceito, porque conhece e vê a unidade subjacente do todo, que é, sem dúvida, a origem da expressão “os extremos se tocam” e da imagem do ouroboros, a serpente que morde a própria cauda.
Ora, a desgraça da humanidade se deve precisamente a essa dualidade de extremos, que está na raiz de toda reflexão filosófica e religiosa sobre a condição humana e inspirou Hegel, por exemplo, no conceito de “dialética”. Essa dualidade parece ter sido criada para nos fazer sonhar com uma unidade que aparentemente é inatingível aqui embaixo, para sonhar com um mundo onde a felicidade não teria como contrapartida a infelicidade, o amor, o ódio… Parece que o homem, em sua ignorância, se esforça com todas as suas forças, mas em vão, para estabelecer essa unidade na terra; enquanto o gnóstico “sabe”, porque o vive, que há um mundo onde ela existe. Não se trata de outro planeta, mas de outra natureza. “Meu reino não é deste mundo”, diz Jesus.
De modo que o dualismo que é fácil de observar em nosso mundo não tem nada a ver com o dos gnósticos. E o desejo ancestral de resolver o dualismo terreno de felicidade e dor, frio e calor, aqui e ali… é apenas um reflexo da profunda aspiração do gnóstico de todos os tempos de escapar da matéria em que o homem está atolado para alcançar a natureza divina. Todas essas características levam à conclusão de que o Evangelho de Felipe é um texto tipicamente gnóstico, de um período em que a gnose inspirou uma profusão de escritos e vários movimentos em todo o mundo, incluindo o cristianismo primitivo. Felipe era um gnóstico, e é característico dos gnósticos receber as revelações internas necessárias para seu progresso ao longo do caminho da iniciação e para a tarefa que lhes foi confiada nesta terra para a libertação da humanidade.