Nem tudo no Evangelho de Felipe é absolutamente metafórico. Até mesmo os pneumáticos levam uma vida terrena, comem e bebem (embora Valentinus tenha afirmado, sem dúvida metaforicamente, que Jesus não defecava), participam das atividades de suas culturas e se envolvem em práticas valentinianas. Os pais da igreja às vezes nos dão detalhes específicos das práticas valentinianas, embora muitas vezes sejam vistas através das lentes distorcidas de uma ortodoxia ciumenta.
Muitos estudiosos ficaram particularmente fascinados com as referências aos sacramentos no Evangelho de Felipe. Um sacramento é um rito específico no cristianismo. O latim sacramentum foi usado na tradução vulgata do Novo Testamento grego para traduzir o grego mysterion, que ocorre em sua forma copta em Felipe e é traduzido aqui como “mistério”. Na seção 60, Felipe nos diz que “o Senhor fez tudo em um mistério: um batismo e um crisma e uma eucaristia e uma redenção e uma câmara nupcial sagrada”.
Os ritos do batismo e da eucaristia, a ingestão do pão e do vinho, indiscutivelmente fazem parte do cristianismo pelo menos desde a época de Paulo, e devem sua razão de ser a eventos que supostamente aconteceram durante a vida de Jesus. O crisma, a redenção e a câmara nupcial discutidos acima também podem ter sido ritos sacramentais. Ninguém sabe exatamente a que ritual de redenção ou resgate o Evangelho de Felipe pode se referir, mas um crisma é uma unção com óleo. Irineu, que é sempre suspeito nessas questões, escreveu que os marcosianos, que eram um ramo dos valentinianos que seguiam Marcus, aluno de Valentinus, derramavam uma mistura de óleo e água “e queriam que isso fosse a redenção”. É mais provável que o óleo e a água simbolizem a redenção de alguma forma, embora não esteja clara qualquer conexão com a noção de ter as dívidas pagas ou de ser comprado de volta do cativeiro.
Independentemente de o Evangelho de Felipe ter ou não em mente ritos reais para cada um dos cinco sacramentos, os valentinianos sem dúvida praticavam alguns dos mesmos rituais que os cristãos, aos quais os valentinianos se referiam como psíquicos ou meramente da alma. Presumivelmente — e há ampla evidência disso no Evangelho de Felipe — os valentinianos viam nesses rituais significados ocultos e uma relevância para a situação humana, enquanto outros viam apenas o ritual convencional.
Irineu nos fala de um ritual de iniciação valentiniano conduzido por Marco Valentiniano. Em sua maneira tipicamente hostil, ele escreve sobre uma pobre mulher que ficou histérica com o rito e o apresenta como um truque inteligente de magia pelo qual uma taça maior é preenchida com vinho por uma taça menor, de modo que a taça maior transborda. Irineu parece pensar que isso deveria aterrorizar qualquer pobre neófito que se submetesse à iniciação. Mas coloque-se na posição do iniciado. O simples fato de estar no papel de um iniciado durante uma cerimônia tão importante lhe daria uma sensação maior de consciência. Como, contra todas as expectativas, o líder do ritual continua a derramar quando a taça já está cheia, e o vinho tinto escorre pela borda da taça e cai no chão, se estaria vivamente consciente do momento presente. Como alguém que já viu um professor do Quarto Caminho encher espontaneamente uma taça de vinho em um jantar formal, com a mesa posta com talheres de prata, toalha de mesa e guardanapos de linho fino e belos arranjos de flores, posso testemunhar sua eficácia. A criação de um senso elevado de estar ciente do momento presente é a base de todos os ensinamentos espirituais genuínos.
O Evangelho de Felipe nos diz repetidamente que os nomes não são a realidade, mas são apenas indicadores da realidade que podem ser mal utilizados ou mal interpretados, assim como o monge zen disse a seu aluno para não olhar para o dedo, mas para o que ele estava apontando. A imagem do renascer não é o renascer em si. Nascer espiritualmente em um segundo nascimento nos leva a um novo mundo, um mundo do espírito que é tão surpreendentemente diferente do mundo do corpo e da alma quanto o mundo do ar e da luz é diferente da escuridão do útero.
O Evangelho de Felipe nos oferece uma visão da interpretação espiritual das escrituras que é a base do cristianismo. Ao estudá-lo, podemos obter uma visão mais ampla do antigo gnosticismo e do Novo Testamento. Mas, acima de tudo, o Evangelho de Felipe deseja que o leitor desenvolva os níveis mais elevados de consciência aos quais se refere: “Viste o espírito e te tornaste o espírito”.