Evágrio — Tratado da Prática
PRAXIS ou PRAKTIKÉ ou PRÁTICA
Tradução de Antonio Carneiro acompanhada de notas do tradutor.
51 Pela observação descobrirás que, entre os demônios, dois estão muito prontos e ultrapassam quase o movimento de nosso intelecto: o demônio da fornicação, e aquele que nos arrasta para blasfemar contra Deus. Mas, o segundo se demora pouco, e o primeiro, se os pensamentos que ele desencadeia não estiverem acompanhados de paixão, não será para nós um impedimento para a ciência de Deus.
52 Separar o corpo da alma não pertence senão Àquele que os uniu; mas, separar a alma do corpo, isto pertence também àquele que nos dirigiu para a virtude. Nossos Padres, com efeito, nomeiam anacorese o exercício da morte e a fuga do corpo.
53 Aqueles que estão no erro de alimentar demasiado suas carnes e que, « tomando cuidado dela, excitam seus desejos », que se engordam eles mesmos e não por ela. Mas, conhecem a graça do Criador, aqueles que, por meio desse corpo, obtiveram a impassibilidade da alma e percebem de uma certa forma a contemplação dos seres.
54 Quando nas imaginações do sono, o demônio, atacando à parte concupiscível, fazem-nos ver reuniões de amigos, banquetes, parentes, coros de mulheres e todos outros espetáculos do mesmo gênero geradores de prazer, e que acolhemos essas imagens com avidez, é que nesta parte estamos doentes e que a paixão aí é forte. Quando, por outro lado, perturbam a parte irascível, nos forçando seguir caminhos escarpados, fazendo surgir homens armados, bestas venenosas ou carnívoras, e que ficamos aterrorizados diante esses caminhos, e que, perseguidos por estas bestas e por esses homens, fugimos, então, tomemos cuidado com a parte irascível, e, invocando o Cristo nas vigílias, tenhamos acesso aos remédios nomeados.
55 Se eles não vem acompanhados de imagens, os movimentos naturais do corpo durante o sono significam que a alma está até certo ponto em boa saúde; mas, se formam imagens, é indício de má saúde. Se trata-se de imagens indefinidas, considero que aí é sinal de uma paixão antiga; se estão definidos, é que a ferida é recente.
56 As provas de impassibilidade, nós as reconhecemos, de dia, nos pensamentos, e, de noite, nos sonhos. E diremos que, se a impassibilidade é a saúde da alma, seu alimento é a ciência, a única que tem por hábito nos unir aos santos poderes, uma vez que a união com os incorpóreos resulta naturalmente de uma disposição semelhante.
57 Existem dois estados sossegados da alma: um provém das sementes naturais, o outro resulta da retirada dos demônios. O primeiro é acompanhado de humildade e de compunção, de lágrimas, de um desejo infinito de Deus, e de um zelo sem medidas para o trabalho; o segundo, a vanglória, acompanhada do orgulho, utiliza o desaparecimento dos outros demônios para arrastar o monge à sua perda. Aquele então que observa os limites do primeiro estado reconhecerá rapidamente as incursões dos demônios.
58 O demônio da vanglória se opõe ao demônio da fornicação, e não se pode admitir que todos dois maculem a alma ao mesmo tempo, pois um promete as honras, o outro conduz à desonra. Se então um dos dois se aproxima e aperta de perto, produz então em ti os pensamentos do demônio adverso e se tu pôde, como se diz, expulsar um prego por outro, saiba que estás próximo das fronteiras da impassibilidade. Pois teu intelecto teve força para destruir pelos pensamentos humanos os pensamentos do demônio. Mas, repelir pela humildade o pensamento da vanglória, ou pela continência aquele da fornicação, seria a prova de uma impassibilidade muito profunda. Tentes aplicar também este método contra todos os demônios que se opõem uns aos outros, pois com o mesmo golpe saberás a qual paixão estás mais afetado. Entretanto, tanto quanto possas, procures obter de Deus que te afaste os inimigos da segunda maneira.
59 (Quanto) mais a alma progride, mais fortes são os antagonistas que se sucedem contra ela. Pois, não creio que esses sejam sempre os mesmos demônios que se mantêm junto dela. Isto, o sabem melhor que ninguém aqueles que percebem as tentações de uma maneira mais penetrante, e que veem a impassibilidade que adquiriram sacudidas pelos assaltos sucessivos.
60 A impassibilidade perfeita sobrevém na alma após a vitória sobre todos os demônios que se opõem à prática; a impassibilidade imperfeita se diz relativamente ao poder do demônio que luta ainda contra ela.