Evágrio Prática 21-30

Evágrio — Tratado da Prática
PRAXIS ou PRAKTIKÉ ou PRÁTICA
Tradução de Antonio Carneiro acompanhada de notas do tradutor.

21 « Que o sol não se ponha sobre nossa irritação », com medo que os demônios, surgindo a noite, apavorem a alma, e tornem o intelecto covarde para o combate, até o amanhecer. Com efeito, as visões assustadoras nascem da pertubação da parte irascível, e nada leva mais o intelecto à desertar como a parte irascível quando está perturbada.

22 Quando, tendo agarrado um pretexto, a parte irascível de nossa alma fica profundamente perturbada, naquele momento, os demônios nos sugerem que a anacorese é bela, para nos impedir de por fim ao que tinha causado nossa tristeza, e para nos livrar assim de nossa pertubação. Mas, quando a parte concupiscível fica violentamente acalorada, então, ao contrário, trabalham para nos tornar sociável, nos chamando de duros e selvagens a fim de que, desejando os corpos, tenhamos comércio com os corpos. Não é preciso lhes obedecer, mas, mais que tudo fazer o inverso.

23 Não te abandones ao pensamento da cólera, a combater interiormente aquele te magoou, nem àquele (pensamento) da fornicação, a imaginar continuamente o prazer.Por um lado, a alma é obscurecida, por outro, é convidada a abraçar sua paixão; nos dois casos, teu intelecto é maculado; e, como, no momento da oração, tu te apresentas com tais imagens e não oferece pura tua prece à Deus, tu te deparas logo com o demônio da acedia, que salta precisamente sobre tais disposições e despedaça a alma, como um cão faz com uma jovem corça/um jovem cervo.

24 A natureza da parte irascível, é de combater os demônios e de lutar em vista do prazer, qualquer que seja. Também os anjos nos sugerem o prazer espiritual e a beatitude que lhe segue, para nos exortar à voltar nossa irascibilidade contra os demônios. Estes, por sua vez, nos arrasta rumo às cobiças do mundo e obrigam a parte irascível, indo contra sua natureza, à combater os homens, isto, porque o intelecto ficou obscurecido e decaiu da ciência, se tornando traidor das virtudes.

25 Resguarda-te de nunca fazer um dos irmãos partir, por tê-lo irritado, pois tu não escaparás, na tua vida, do demônio da tristeza, que será sempre para ti um obstáculo na hora das orações.

26 Os presentes sossegam o rancor: creio em Jacó que, pelos dons, lisonjeou Esaú que caminhou ao seu encontro com quatrocentos homens. Mas, nós que somos pobres, supliquemos à nossa indigência pela mesa.

27 Quando nos defrontamos com o demônio da acedia, então, em lágrimas, dividimos nossa alma em duas partes: uma que consola e outra que é consolada, e, semeamos em nós boas esperanças, pronunciamos com santo Davi esta encantação: « Porque estás triste, oh minha alma, e porque me perturbas ? Confie em Deus, pois eu o louvarei, ele a salvação de minha face e meu Deus. »

28 Não é necessário desertar da célula na hora das tentações, se plausível forem os pretextos que se forja; mas; é preciso ficar sentado no interior, ser perseverante, e acolher valentemente os assaltantes, todos, mas, sobretudo o demônio da acedia que, por ser o mais pesado de todos, se dirige a alma afetada no mais alto ponto, pois fugir de tais lutas e as evitar, isto ensina ao intelecto a ser inábil, covarde e fujão.

29 Eis aqui o que dizia nosso mestre santo e muito prático: « É preciso que o monge esteja sempre pronto, como se fosse morrer na manhã seguinte, e, inversamente, que use seu corpo como se fosse viver com ele por numerosos anos. Isto, com efeito, dizia, por um lado, retira os pensamentos da acedia e torna o monge mais zeloso, por outro (lado),conserva seu corpo com boa saúde, e mantém sempre igual sua abstinência.»

30 É difícil de escapar do pensamento da vanglória, pois isso mesmo que fazes para te livrar disso torna-se para ti uma nova fonte de vanglória. Os demônios não são sempre os que se opõem a nossos pensamentos retos/direitos, mas, às vezes também são os vícios pelos quais somos afetados.