Evágrio Prática 11-20

Evágrio — Tratado da Prática
PRAXIS ou PRAKTIKÉ ou PRÁTICA 11-20
Tradução de Antonio Carneiro acompanhada de notas do tradutor.

11 A cólera é uma paixão muito repentina. Diz-se, com efeito, que é uma efervescência da parte irascível e um movimento contra aquele que fez uma falta ou pareceu ter feito uma.Ela torna a alma furiosa ao longo de todo o dia, mas, é sobretudo durante as orações que ela se prende ao intelecto, lhe apresentando o rosto daquele que o magoou. Às vezes mesmo, quando ela permanece e se transforma em ressentimento, provoca, à noite, agitações, com desfalecimento do corpo, palidez, assalto por animais venenosos. Essas quatro manifestações, que são continuação do ressentimento, pode-se encontrá-las acompanhando numerosos pensamentos.

12 O demônio da acedia, que é também chamado « demônio do meio-dia » (vide akedia; daimonion), é o mais pesado de todos; ataca o monge cerca da quarta hora e assedia sua alma até a oitava hora. De início, faz que o sol pareça lento para se mover, ou imóvel, e que o dia pareça ter cinquenta horas. Em seguida, força a manter os olhos continuamente fixos na janela, à saltar fora de sua célula, à observar o sol para ver se está longe da nona hora, e a olhar aqui, acolá se algum dos irmãos… Além disso, lhe inspira aversão ao lugar onde está, pelo seu próprio estado de vida, pelo trabalho manual, e, mais ainda, a ideia que a caridade desapareceu entre os irmãos, que não tem ninguém para consolá-lo. E se encontra alguém que, naqueles dias, tenha magoado o monge, o demônio se serve também daquilo para fazer crescer sua aversão. Leva-o então à desejar outros lugares, onde poderá achar facilmente então aquilo que tem necessidade, e exercer um ofício menos penoso e que traga vantagem; acrescenta que agradar ao Senhor não é uma questão de lugar: por todos os lados, com efeito, diz, a divindade pode ser adorada. Junta à isso a lembrança de seus próximos e de sua existência de outrora, lhe apresenta o quão longa é a vida, colocando diante seus olhos as fadigas da ascese; e, como se diz, carrega todas suas baterias contra o monge para que abandone a célula e fuja deste estado. Este demônio não é seguido imediatamente por nenhum outro: um estado sossegado e uma alegria inefável sucedem na alma após a luta.

13 O pensamento da vanglória é um pensamento muito sutil que se dissimula facilmente entre os virtuosos, desejando publicar suas lutas e perseguindo a glória que vem dos homens. Ele lhe faz imaginar demônios dando gritos, mulheres curadas, uma multidão que toca seu manto; ele lhe prediz até que estará pronto à partir de agora, e faz surgir à sua porta pessoas que vem lhe procurar: e se não quiser, encaminha-lo-á atado. Tendo feito se exaltar dessa forma pelas vãs esperanças, ele alça voo e o abandona às tentações seja do demônio do orgulho, seja daquele da tristeza, que introduz nele outros pensamentos, contrários à essas esperanças. Às vezes até o entrega ao demônio da fornicação, ele que, um instante antes, era um santo padre, que se encaminhava atado!

14 O demônio do orgulho é aquele que conduz a alma para a queda a mais grave. Ele lhe incita, com efeito, à não reconhecer a ajuda de Deus, mas à crer que ela é por si mesma a causa das boas ações, e à olhar de alto os irmãos considerando-os todos como ininteligentes porque ignoram isso a seu respeito. Vem em sua sequência a cólera, a tristeza e, o que é o último dos males, o extravio do espírito, a loucura, a visão de uma multidão de demônios no ar.

15 Quando o intelecto vagabundeia, a leitura, a vigília e a oração o fixam; quando a concupiscência fica inflamada, a fome, a pena e a anacorese (vide anachoresis) a apagam, quando a parte irascível fica agitada, a salmodia, a paciência e a misericórdia a acalmam. E isto, cumpre ao momento e na medida que convém; pois o que é imoderado e inoportuno dura pouco, e o que dura pouco é mais nocivo que útil.

16 Quando nossa alma cobiça alimentação variada, que reduza então sua ração de pão e água, a fim de ser grato até por um simples bocado. Pois a saciedade deseja alimentos de todos os tipos, enquanto que a fome considera a saciedade do pão como beatitude.

17 O uso moderado da água contribui muito à continência. Creram nisso os trezentos israelitas que, com Gedeão, se tornaram mestres de Madian.

18 Que a vida e a morte cheguem juntas para o mesmo homem, pode-se admitir isso: paralelamente é impossível que a caridade coexista entre qualquer um com riquezas. Pois a caridade é destrutiva não somente de riquezas, mas também de nossa própria vida transitória.

19 Aquele que foge de todos os prazeres do mundo é uma cidadela inacessível ao demônio da tristeza. A tristeza, com efeito, é a frustração de um prazer, presente ou esperado; e é impossível rechaçar este inimigo, se tivermos um apego apaixonado para este ou aquele bens terrestres; pois ele joga sua rede e produz a tristeza, aí onde vê que vai exatamente nossa inclinação.

20 Se a cólera e o ódio fazem crescer a irascibilidade, a compaixão e a doçura diminuem até a que existe.