Biblioteca de Nag Hammadi — Eugnostos — Sabedoria de Jesus Cristo
Michel Tardieu: Apresentação de M. Tardieu, in SGM, n. 1, 1984. (Trad. em português Álvaro Cunha)
Estes dois escritos, o primeiro dos quais encontra-se igualmente no Códice V e o segundo no Códice de Berlim, são geralmente apresentados juntos. E com toda razão, pois sem dúvida dependem de original comum. Entretanto, diferem entre si em certos aspectos: Eugnosto é epístola filosófico-religiosa de mestre a seus discípulos, sem grandes referências cristãs explícitas; a Sabedoria é discurso de revelação do Salvador a seus adeptos, com referências bíblicas claras e abundantes. O objetivo de Eugnosto é o de construir um panteão simples e conhecido, em torno de três entidades divinas: o Pai de tudo, no meio de sua corte celeste (p. 71,13-76,12); o Homem, deus e rei da corte celeste (p. 76,13-78,24); o Filho do Homem, à frente da Igreja angélica (V, p. 8,18ss; III, p. 79-85). O texto apresenta sistematicamente a natureza, a função e o meio circundante de cada uma dessas entidades, dentro de quadro positivo, ignorando o mito da queda, que interromperia a cadeia celeste: a própria Sofia não é submetida a paixões, sendo paredra do Homem ou do Filho do Homem; a angelologia, muito desenvolvida e positiva, não conhece anjos maus. Esse mundo celeste é banhado por alegria sem máculas.
Já a Sabedoria de Jesus Cristo situa a revelação no quadro evangélico de uma aparição de Jesus ressuscitado sobre uma montanha. Jesus propõe aos seus discípulos (doze homens e sete mulheres), deprimidos e inquietos, que responderá às suas perguntas. E lhes responde sobre os seguintes pontos1: o fundamento de tudo e a economia do Salvador; a manifestação do Pai aos perfeitos (= os éons); o porquê da existência dos éons; o conhecimento que se tem do Pai e dos éons; a manifestação do Homem; o significado da palavra “Homem”; o porquê da descida do salvador, Filho do Homem; o número de éons; o número de imortais; os habitantes dos éons; a origem, a situação e o destino daqueles que seguem Jesus.
Foi sem dúvida a partir de documento comum que Eug e SJC tiveram origem, mas onde o primeiro tratado se caracteriza por sua visão intemporal e sua angelologia indiferenciada e positiva, o segundo, ao preço de certas distorções, transpôs a revelação para o nível histórico, reduzindo o Filho do Homem angélico a Cristo e utilizando amplamente as fontes cristãs, sobretudo a tradição de João.
Assim, é importante a distância entre os dois tratados. Para permitir ao leitor julgar por si mesmo, apresentaremos alguns textos maiores. A modo de introdução, o prólogo de SJC, sem paralelo em Eug, constitui precioso testemunho do quadro evangélico imposto aos discursos de revelação:
A Sabedoria de Jesus Cristo
Depois que ele se elevou de entre os mortos, quando seus doze discípulos e as sete mulheres (que) o seguiam haviam ido à Galileia, sobre a montanha chamada “lugar de colheita e alegria”, após terem se reunido, estando na incerteza sobre o fundamento de tudo, o desígnio da santa providência e o poder das autoridades, bem como sobre todas as coisas que o Salvador havia feito com eles no mistério do santo desígnio, (foi então que) se manifestou o Salvador, não sob o seu aspecto inicial, mas sob (o aspecto do) Espírito invisível. E seu aspecto era o de grande anjo de luz. E sua forma me é impossível descrever, pois nenhuma carne mortal pode suportá-la, mas só uma carne pura e perfeita como a que ele nos mostrou no monte que chamamos “das Oliveiras”, na Galileia. E ele disse: “Paz a vós! Eu vos dou a minha paz!” Eles ficaram tomados de surpresa e com medo. O Salvador sorriu e lhes disse: “O que vos preocupa? (A propósito de que) estais na incerteza? (Por que) vos fazeis perguntas?” Filipe disse: “A propósito do fundamento de tudo e do desígnio (do Salvador)” (p. 90,11-92,6).
Eis uma breve apresentação das três entidades divinas. O Pai de tudo:
Eug, p. 71,13-72,9
Aquele-que-é é indizível. Nenhum principado o conheceu, nenhuma autoridade, nenhuma sujeição, nenhuma natureza desde a fundação do mundo, senão ele mesmo.
Esse, com efeito, é imortal e eterno porque não teve nascimento, pois quem quer que seja submetido ao nascimento perecerá. Ele é incriado porque sem começo, pois quem quer que tenha um começo tem um fim e nada o domina. Ele também não tem nome; com efeito, quem quer que tenha nome é criatura de um outro. Ele é inominável. Ele não tem forma humana, pois, com efeito, quem tem forma humana é a criatura de um outro.
Ele possui um aspecto próprio, não como o aspecto que percebemos ou vemos, mas como um aspecto de outro tipo.
SJC, III, p. 94,4-95,4
O Salvador diz: “Aquele-que-é é indizível. Não há principado que o conheça, nem autoridade, nem sujeição, nem natureza de qualquer tipo, desde a fundação do mundo até agora, senão ele mesmo e aquele a quem lhe apraz revelar-se por meio daquele que provém da raiz primordial, (isto é) eu, eu, o Salvador sublime”.
Esse, com efeito, é imortal. Ele é eterno porque não teve nascimento, pois quem quer que seja submetido ao nascimento perecerá. Ele é incriado porque sem começo, pois quem quer que tenha um começo tem um fim. Nada tem domínio sobre ele. Ele também não tem nome, pois aquele que tem nome é criatura de um outro.
E ele possui uma forma própria, não como aquela que haveis visto ou como aquela que captastes, mas como forma estranha.