FILOSOFIA MEDIEVAL — Étienne Gilson
O SER E A EXISTÊNCIA
É talvez significativo que, para a Filosofia, seja mais fácil compreender as criaturas a partir de Deus, do que compreender a Deus a partir das criaturas, não obstante serem as criaturas o ponto de partida da filosofia sobre Deus. Devemos ir das criaturas a Deus, mas o caminho de volta de Deus às criaturas abre as mais luminosas perspectivas sobre a natureza das operações divinas.
Esta verdade acha-se maravilhosamente confirmada pela primeira consequência que para a nossa compreensão dos seres finitos, se pode tirar da nova noção de Deus. Se o nome próprio de Deus é Ele É, ou AQUELE QUE É, nenhum outro ente pode reivindicar este nome. Ora, como vimos, o nome divino significa, em linguagem filosófica, que o Ato de Ser é, em Deus, aquilo que a essência é nos outros entes. Por conseguinte, nenhum outro ser, senão Deus, é o seu próprio ato de ser.
Se, em Deus nada mais se encontra do que o seu Puro Ato de Ser, nos entes que não são Deus, sempre se encontra algo a mais do que o próprio ato existencial. Ora, sabemos o que é esse “algo a mais”. Na nossa peregrinação filosófica das criaturas a Deus pelo caminho da remoção progressiva a última composição que tivemos de eliminar para atingi-lo foi a de essência e existência. Por conseguinte, a primeira composição que devemos esperar encontrar, no retorno de Deus às criaturas, é a de essência e existência. Poderá haver ainda outras composições nas criaturas; mas esta, haverá sempre. Com exceção de Deus, todo ente se compõe pelo menos “daquilo que” ele é (essência) e do ato existencial em virtude do qual ele é, ou existe, isto é, do seu ato de ser.
À questão frequentemente formulada: “qual é, no tomismo, o sentido da célebre composição de essência e existência?” a resposta direta é: Isto significa que, como Deus é o seu próprio Ato de Ser, nenhum outro ente pode ser o seu próprio ato de ser. Algumas vezes se disse que é possível ser tomista sem aceitar a composição de essência e existência nos entes finitos. Não há um padrão oficial de tomismo. Se alguém admira Tomás de Aquino, e deseja professar sua doutrina, ou ao menos seguir seus princípios, quem se sentiria autorizado a negar-lhe o qualificativo de tomista? Todos seguimos a Tomás de Aquino na medida em que compreendemos o sentido de sua doutrina. Se não logramos compreender um de seus princípios, ou se, embora entendendo, não lhe avaliamos a importância, podemos na melhor boa fé, negligenciar tal princípio e ainda nos considerarmos seus verdadeiros discípulos. Devem-se encorajar os tomistas de intenção ou desejo.
Para prevenir equívocos alguns intérpretes de Tomás de Aquino organizaram listas das posições doutrinárias fundamentais a serem adotadas por aqueles que quiseram dizer-se tomistas. Ainda que seja legítimo proceder assim, não podemos, no entanto, em última análise, assumir uma posição filosófica, sem primeiro entendê-la. Dizer a alguém que ele tem obrigação de compreender alguma coisa é colocá-lo em situação embaraçosa, porque se ele não pode, é porque não pode mesmo. Por esse motivo, pensamos, também, que não haveria razão para definir-se um Tomista de estrita observância que não reconhecesse por tomista todo aquele que não fizesse parte do seu seleto grupo filosófico.
Certo é que, tudo bem examinado, é difícil perceber em que sentido alguém pode ser tomista se não concorda com Tomás de Aquino quanto ao significado do primeiro princípio. Ora, este primeiro princípio é ser e como ele está envolvido em todos e cada um dos nossos juízos, não temos possibilidade de concordar em coisa alguma com Tomás de Aquino, se discordarmos dele quanto ao sentido do primeiro princípio. Rejeitar a composição de essência e existência na criatura é rejeitar a interpretação propriamente tomista do nome divino em Teologia, ou a noção propriamente tomista do ser em Filosofia. Ora, não concordar com Tomás de Aquino sobre a natureza de Deus, ou sobre a natureza do ser, é não concordar com ele em coisa alguma. Na doutrina autêntica do doutor angélico a linha divisória entre Deus e os outros entes é a composição de essência e existência. Tudo o que não é seu próprio ato de ser, não é Deus. Ou então inversamente, tudo o que não é Deus, não é o seu próprio ato de ser.
De vez que ser o Puro Ato de Ser é o mesmo que ser infinito, uma primeira consequência é que tudo o que não é Deus é finito, pela simples razão que, não sendo o seu próprio ato de ser, não é Deus. Ora, a causa da finitude é a essência, porque o que faz um ente ser finito é aquilo que se acrescenta ao seu ato de ser. Em todos os entes, com exceção de Deus, o ato de ser é limitado, determinado e restringido pela sua essência. Portanto, o ente finito pode ser concebido como um ente cujo ato existencial é limitado pela própria essência que ele possui.
Este ponto é tão fundamental que merece ser considerado à parte para exame, meditação e, em certo sentido, contemplação. A essência de um ente finito, fazendo-o ser aquilo que ele é, impede-o de ser o próprio Deus. Noutras palavras, a essência de um ente finito exerce sobre o ato de ser uma influência restritiva, que o impede de ser o Puro Ato de Ser, e faz com que seja o ato finito de ser desta ou daquela essência apenas. Num homem, a existência é somente a existência de um homem; se fosse ela pura existência atual, seria o Ato Infinito de Ser, que é Deus. É indispensável nos determos neste passo, para meditarmos sobre a relação fundamental que há entre as noções de Deus, de Ato de Ser e de essência. Todas as conclusões obtidas até aqui colocam-se agora diante de nossos olhos como num quadro. Deus é o ente cuja essência é o seu próprio ato de ser. Todos os entes, com exceção de Deus, têm a sua essência distinta de sua existência. O efeito primordial da essência é restringir o ato de ser às dimensões determinadas pela definição daquilo que a essência é. Nosso intelecto deveria acostumar-se a passar de uma destas proposições às demais, até que as visse dotadas de uma espécie de unidade orgânica.
A segunda consequência da mesma verdade fundamental que, com exceção de Deus, todos os entes têm a essência distinta de sua existência, é que, nesses entes nada é mais perfeito do que o próprio ato pelo qual eles são. Neles o ato de ser é mais perfeito do que a essência, é mais perfeito do que a essência, é mais perfeito, numa palavra, do que tudo o mais. Num homem, por exemplo, ser é mais elevada perfeição do que ser um homem. Não é de admirar, pois onde não há ato de ser, não há simplesmente nada.
É essencial ao tomismo esta ideia de que em qualquer ente dado o ato pelo qual ele é, é a sua suprema perfeição. Negá-la seria deixar de lado algo de essencial à doutrina de São Tomás. O próprio Tomás de Aquino repetiu-o sob várias formas, sempre, porém, sem qualquer espécie de restrição. O ato de ser é o ato de todos os atos, a perfeição de todas as perfeições. Num ente constituído por uma forma pura, como o anjo, o ato de ser é o ato de perfeição dessa forma, pois sem ele, a forma nada seria. Num ente como o homem, composto de corpo e alma, a alma é a forma do corpo, mas o ato de ser é o ato e perfeição da essência da própria alma. Sem esse ato a alma não existiria, e o corpo não existiria também, pois não haveria alma para atualizá-lo. Em resumo, o ato de ser dá existência atual a quaisquer outras perfeições que possam encontrar-se no ente em questão. Dá o ser a tudo o mais; ele próprio nada recebe.