Etienne Gilson Deus Existencia

FILOSOFIA MEDIEVAL — Étienne Gilson
DEUS E A EXISTÊNCIA
Seria, para nós, muito instrutivo sabermos os caminhos pelos quais Tomás de Aquino chegou à apreensão de suas noções fundamentais em Filosofia, e, pela mesma razão em Teologia. Eis algo que muito raramente conhecemos no caso de qualquer filósofo, e que, sem dúvida ignoramos no tocante a São Tomás. A sua reforma doutrinai liga-se a certa noção de ser elaborada por ele próprio. Esta noção encontramo-la perfeitamente formulada no De Ente et Essentia, escrito por volta de 1256. Tinha ele, então, 31 anos. Já no Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, Tomás de Aquino servira-se da mesma noção do ser, aplicando-a especialmente a Deus. Seja de 1253 ou de 1254, este Comentário foi o seu primeiro trabalho. Pode-se dizer, por conseguinte, que, tal como nós historiadores o conhecemos, Tomás sempre teve sua própria noção de ser.

Ainda não se tentou fazer a história pré-tomista desta noção. Ela foi preparada com certeza pela Metafísica de Avicena, e, através desta, pela de Alfarabi. Sustentavam estes dois filósofos a tese de que a existência é um complemento da substância que, por não estar incluso na sua essência, lhe sobrevém, por assim dizer, como um acidente. Somente Deus não recebe a existência como complemento de sua essência. Deus não tem sua própria existência, ele é sua própria existência. Moisés Maimonides, o Rabi judeu por quem São Tomás sempre manifestou sincero respeito, percebeu a importância teológica e religiosa desta doutrina. E, de fato, o Deus do Antigo Testamento, que é comum a judeus, muçulmanos e cristãos, não poderia ser melhor descrito do que por esta mesma noção de ser que a própria Sagrada Escritura, se não ensinara, pelo menos sugerira a filósofos e teólogos. Houve, por certo, uma espécie de preparatio thomistica e o historiador seria o último a minimizar sua importância. Não obstante, como se verá, a noção propriamente tomista de ser aparece pela primeira vez nos trabalhos de São Tomás de Aquino.

Ignorando como Tomás de Aquino chegou a esta nova noção, gostaríamos de saber ao menos como demonstrou a sua veracidade, ou, pelo menos, como justificou o seu significado.

Aqui, novamente, em vão procuraríamos em seus escritos teológicos ou filosóficos a justificação de sua noção de ser. Ele a utiliza com frequência, recorre a ela, em última análise, sempre que problemas fundamentais estão em jogo, mas não sugere qualquer caminho através do qual se possa esclarecer, explicar ou justificar analiticamente esta noção. Não existe nenhuma outra noção a partir da qual se possa encontrá-la seja por indução ou por dedução. B não é de admirar. Como o “ente” é uma noção primeira, ou melhor, é a noção absolutamente primeira, goza da indemonstrabilidade própria dos princípios. Ora, assim como a noção do ser pode muito bem ser “vista”, isto é, ser objeto de “intuição” mas não pode justificar-se por uma noção anterior (pois que esta noção anterior já incluiria o ser), assim também a noção do ser, tal como a interpreta Tomás de Aquino, pode muito bem ser entendida, possuída, contemplada e usada como fonte de luz na investigação da natureza da realidade, mas não pode justificar-se dedutiva ou indutivamente por nenhuma espécie de demonstração. Neste caso, desde que estamos lidando com o primeiro princípio, o método pode ser apenas “ostensivo”.

Duas vezes podemos seguir passo a passo nos trabalhos de Tomás de Aquino — uma na Contra Gentiles e outra na Summa Theologiae — o seu modo pessoal de abordar a noção do ser que está no âmago de sua concepção metafísica da realidade. Na Contra Gentiles — cujo texto seguiremos —, partindo da demonstração da existência de Deus concebido como o Primeiro Motor Imóvel do mundo da natureza, Tomás estabelece sucessivamente, seguindo um método de remoção progressiva, primeiro que Deus não tem começo nem fim: é eterno; a seguir, que não há em Deus potência passiva, nem matéria, nada de violento ou de não natural e nada de corpóreo. No Livro I, cap. 21, prova que Deus é sua própria essência e, finalmente, no cap. 22, que em Deus são idênticos “ser atual” e “essência”. Esta conclusão é decisiva para a determinação da noção tomista de ser. Efetivamente, agora sabemos que há um ente que é “ser” e nada mais do que ser. Este ente é Deus. Assim, portanto, se soubermos o que Deus é, estaremos seguros de saber o que é, na realidade “puro ser”. O caminho que seguiu Tomás nesta indução progressiva consistiu em eliminar da noção da natureza divina, sucessivamente, todos os tipos concebíveis de composição. Parece, por conseguinte, que a noção tomista de ser poderia facilmente encontrar-se ao caso da sequência metafísica, que, partindo da mobilidade e mutabilidade da natureza, termina na afirmação de” um ente tão perfeitamente simples, que a única coisa que dele se pode dizer é que ele é.

Indubitavelmente isto é verdade, mas a questão precisa é de saber por que Tomás de Aquino, nesta sequência metafísica, não parou no capítulo 21. no qual demonstrou que Deus é sua própria essência, ou, em outras palavras, que Deus é essência. De fato, este é o ponto em que aquela operação metafísica se deteria numa teologia, como a de Santo Agostinho, que considerasse sinônimas as palavras Deus, essência, ser e imutabilidade.

Seria fácil reunir textos em que Sto. Agostinho usa estas noções como interpretações da célebre passagem do Êxodo em que Deus, respondendo à pergunta de Moisés, declara expressamente que o seu nome é ELE É. Um simples trecho do “De doctrina christiana” (1, 32, 35), bastaria para estabelecer a identidade das noções de ser e de imutabilidade na teologia de Sto. Agostinho: “Suprema e primariamente é quem é absolutamente imutável e quem tinha toda autoridade para dizer: eu sou aquele que sou, e: dir-lhe-ás: QUEM É enviou-me a vós”. E noutro lugar (Sermo VII, 3, 4: pl 38, 61): “Que é isto? ó Deus, ó Senhor Nosso, qual é o vosso nome? Meu nome é,É, diz Deus. Mas significa “meu nome é É”? Significa: Permaneço eternamente, porque não sou mutável. As coisas que mudam não são, porque não são permanentes. Ser é ser permanente. O que muda foi algo e será algo, mas não é, porque é mutável. Bis por que a imutabilidade de Deus deu testemunho de ei próprio, dizendo: Eu sou Aquele que sou”. Para a equivalência de imutabilidade e essência, o texto decisivo se encontra no De Civitate Dei, V, 2, 3; PL 4.912: “Pois Deus indubitavelmente é substância, ou, melhor, Deus é a essência que os gregos costumavam chamar OUSIA. Como sapientia vem de sapere e scientia de scire, assim também essentia vem de esse, E, efetivamente, quem é mais do que aquele que disse a seu servo Moisés: Sou Aquele que Sou e dirás aos filhos de Israel: Quem É enviou-me a vós?” (Cf. De Civitate Dei, 11, 2; PL. 41, 350).