Romano Guardini — O Senhor
A liturgia de Natal contém dois versículos tirados do capítulo dezoito do livro da Sabedoria:
«Enquanto um profundo silêncio envolvia todas as coisas, e a noite chegava no meio da sua corrida rápida, a vossa Palavra toda-pode-rosa, Senhor, desceu do alto do céu, do seu trono real» (14-15). Estas palavras falam do mistério da encarnação e exprimem maravilhosamente o infinito silêncio que o acompanha.
Na verdade, as grandes coisas realizam-se no silêncio. Não no ruído e na magnificência dos acontecimentos exteriores, e antes na claridade da visão interior, no movimento discreto da decisão,, nos sacrifícios e nas vitórias escondidas: quando o coração é tocado pelo amor, a ação invoca a liberdade do espírito, e o seio, está já fecundado pela obra futura. As forças silenciosas são as realmente poderosas. Queremos agora entregar a nossa atenção ao mais silencioso de todos os acontecimentos, aquele cujo silêncio está perdido em Deus, e cujo acesso nos é vedado. S. Lucas conta: «Ao sexto mês» — depois de o anjo haver aparecido, a Zacarias, e lhe ter anunciado o nascimento de um filho, que devia ser o precursor do Senhor — «foi enviado o anjo Gabriel, por parte de Deus, a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma virgem que era noiva dum homem chamado José, da casa de David; e o nome da virgem era Maria. Ao entrar junto dela, disse o anjo: «Salve, ó cheia de graça, o Senhor está contigo». A estas palavras ela perturbou-se e ficou a pensar no que seria aquela saudação. Disse-lhe o anjo: «Não tenhas receio, Maria, pois achaste graça diante de Deus. Hás-de conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus, Ele será grande e chamar-Se-á o Filho do Altíssimo; dar-Lhe-á o Senhor Deus o trono de seu pai David, reinará eternamente sobre de Jacob e o seu reinado será sem fim». Disse Maria ao anjo: «Como será isso uma vez que eu não conheço homem?» Disse-lhe o anjo em resposta: «O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra. Por isso mesmo é que o Santo que vai nascer se há-de chamar Filho de Deus. E a tua parenta Isabel concebeu também um filho, em sua velhice, e é este o sexto mês dessa a que chamam estéril, porque, da parte de Deus, coisa alguma é impossível». Maria disse então: «Eis a serva do Senhor: seja-me feito segundo a tua palavra». E retirou-se o anjo de junto dela (I, 26-38).
Como tudo isto foi silencioso, mostra-o a sequência da narração: quando se tornou visível que Maria estava grávida, o homem a quem estava prometida, José, quis separar-se dela, julgando que lhe havia sido infiel; salienta-se aliás que ele, sendo «justo e não querendo expô-la à difamação, resolveu repudiá-la em segredo», e sem dúvida a amava muito (Mat., I, 19). Tudo isto foi tão insondavelmente profundo que Maria não teve meio de avisar o seu noivo, e o próprio Deus lho fez saber. Através desta profundidade que, embora muito respeitosamente, podemos em alguma medida avaliar, outra se abre, o próprio abismo de Deus. Dele fala a palavra que citamos no começo do capítulo, a ele se refere o início do quarto Evangelho: «No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus!».
Fala-se aqui de «Deus». Com Ele está ainda Alguém; «junto d'Ele», «voltado para Ele», como indica o texto grego, Alguém que é chamado «Verbo»; no e pelo Qual se manifesta o seu ser, a sua plenitude de vida, o seu sentido. Este é também Deus, como Aquele que exprime este Verbo, e contudo só há um Deus. Deste segundo Alguém diz-se que Ele «veio ao que era seu», no mundo que era sua criação (João, I, 11). Queremos examinar o que aqui se diz: que não somente reina no mundo como Criador omnipotente e omnipresente, mas que num instante preciso, por assim dizer, saltou uma fronteira, uma fronteira que não pode ser apreendida pelo nosso pensamento'; que Ele, o eternamente-infinito, incomensuravelmente-distante, entrou pessoalmente na história.
Como poderemos representar-nos bem a relação de Deus com o mundo? Viveria Ele, depois de haver criado, por sobre a sua obra, numa transcendência infinita beatificamente auto-suficiente; abandonando então o destino do mundo a si mesmo..., Ou, pelo contrário, estaria no, mundo: como fundamento criador originário, do qual tudo proviria; como poder formador, que tudo modelaria; como sentido que a Si próprio em tudo Se exprimiria... No primeiro caso, seria o absolutamente Outro, infinitamente distante; aqui, o essencial em tudo. Se quiséssemos pensar a Encarnação com base na primeira representação, teríamos de dizer que um homem foi de tal modo apreendido pelo, pensamento de Deus, foi por tal modo inflamado pelo amor de Deus — que se tornou possível dizer: nele fala o próprio Deus. Se quiséssemos fundar-nos na segunda representação, teríamos então de dizer que Deus Se exprime em toda a parte, em todas as coisas, em todos os homens; mas, neste particular homem, com uma clareza tão particularmente poderosa e clara — que se torna possível dizer: o próprio Deus nos quis aparecer aqui em carne e osso... Mas logo. vemos que estas representações não são as da Escritura santa.
É inteiramente diferente o que nos ensina a Revelação sobre a relação de Deus com o mundo e sobre a sua Encarnação. Segundo ela, Deus entrou na temporalidade por uma forma especial: mercê de uma decisão toda-pode-rosa, em pura liberdade. O1 Deus eterno e livre não tem qualquer destino; só o homem na história tem um destino. Mas aqui quer dizer-se que Deus entrou na história e que quis tomar para si um «destino».
Nenhum espírito humano pode porém compreender que Deus, da eternidade, tenha entrado no finito e contingente; que tenha dado um passo sobre os «limites» que O afastavam do histórico. A própria «representação pura de Deus» porá em guarda o homem contra o que parece haver de contingente e antropomórfico nesta concepção — em que todavia reside a mais funda essência do cristianismo. O puro pensamento não vai muito longe neste domínio; um amigo lançou-me um dia uma observação que me fez compreender muito mais do que quaisquer «pensamentos» puros. Falávamos de questões desta espécie, e ele disse: «O amor faz destas coisas». Esta frase nunca cessa de me ajudar. Não que ela esclareça verdadeiramente o entendimento, mas, porque apela para o coração, deixa-o penetrar no mistério de Deus. O mistério não é apreendido, mas é trazido para mais próximo, e desaparece o perigo do «escândalo».
Nunca uma coisa grande na vida do homem saiu do puro pensamento; tudo se funda no coração e no seu amor. Mas o amor tem os seus próprios «porquês» e os seus próprios «para quês» — para os entender, mister é que o homem esteja aberto... E quando é Deus que ama? Quando se levantam a profundidade e o poderio de Deus — de que não será então o amor capaz? De uma tão grande magnificência que deverá aparecer como loucura e sem-sentido àquele que não parte do amor. O tempo passa. José, avisado por Deus, chama a sua noiva para junto de si — e quão profundamente deve este aviso ter calado nesse homem silencioso! Que terá ele experimentado quando compreendeu que Deus havia poisado a mão na sua mulher, e que a vida que ela trazia vinha do Espírito Santo! Foi então que despertou o grande e bem-aventurado mistério da virgindade cristã (Mat., I, 19-25). S. Lucas conta a seguir: «Naqueles dias saiu um édito da parte de César Augusto, para ser recenseada toda a terra. Este recenseamento foi o primeiro que se fez sendo Quirínio governador da Síria. E iam todos recensear-se, cada qual à sua própria cidade. Ora José subiu também lá da Galileia, da cidade de Nazaré, até à Judeia, à cidade de David chamada Belém, por ser da casa e linhagem de David, a fim de recensear-se com Maria sua esposa, que se achava grávida. E quando eles ali se encontravam, completaram-se os dias de ela dar à luz e teve o seu filho primogênito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoira, por não haver para eles lugar na hospedaria» (2, 1-7).
Aquilo que ainda há momentos procurávamos apreender no segredo do agir divino, aparece-nos agora numa forma visível. Eis uma criança como as outras; chora, tem fome e dorme como todas as outras, e contudo é o «Verbo feito carne» (João, 1, 14). Deus não habita somente n'Ela, ainda que em plenitude; não foi apenas tocada pelo celestial, ao ponto de dever persegui-lo, lutar e sofrer por ele pela forma mais dura e mais violenta — mas esta criança é Deus, no seu ser e na sua natureza. Se alguma objecção interior aqui se põe, queremos dar-lhe lugar. Não é bom quando, perante coisas tão profundas, se reprime algo; conduz isso a um envenenamento e a uma destruição. Porventura há alguém que experimente alguma resistência à ideia da Encarnação. Talvez esteja pronto a ver nela uma alegoria amorável e densa de sentido, mas não uma verdade literal. E, se no domínio da fé, a dúvida pode alguma vez insinuar-se, isso poderá efetivamente aqui acontecer. Nesse caso, queremos ser respeitosos e ter paciência. Queremos rodear este segredo do coração do cristianismo de uma atenção silenciosa, atenciosa e suplicante: assim, um dia, nos será dada a sua compreensão. Como sinal de orientação, pode ajudar-nos a frase: «O amor faz destas coisas». A esta criança foi agora dado o conteúdo da sua existência. O que um homem é pelo seu nascimento determina o tema da sua vida; tudo o mais só depois se acrescenta. O meio envolvente e os acontecimentos exteriores decerto exercem uma influência, transportam e pesam, comandam e destroem, agem e formam — mas o elemento decisivo permanece este primeiro passo para o ser; aquilo que se é pelo nascimento. Muitos escritores cristãos tentaram precisar o que se teria passado em Jesus. Procuram analisar a sua vida interior, buscando quer na psicologia, quer na teologia, uma resposta. Mas não há uma psicologia de Jesus; ela fracassa ao chegar-se àquilo que Ele finalmente é. Só tem sentido se se quiserem formular questões periféricas, a que não há resposta quando se atinge o centro da personalidade. Quanto à determinação' teológica — em si verdadeira e fundamental para o pensamento cristão — , ela é essencialmente abstrata. A fé procura então um outro pensamento auxiliar, capaz de conduzir mais longe. Tentemos encontrá-lo com o que se segue.
A vida pública do Senhor durou, no máximo, três anos; segundo alguns, dois, se tanto. Como é curto este espaço de tempo! Mas como se tornam então densos de significado os trinta anos anteriores, nos quais Ele não ensinou, não combateu, não realizou milagres. Para a alma crente, nada na vida do Senhor é mais impressionante do que o silêncio destes trinta anos. A idéia que acabamos de chamar em nosso auxílio pode também abrir-nos os ouvidos para a voz deste silêncio, e dar-nos o sentimento respeitoso de quanto de prodigioso se consumava no interior de Jesus.
Uma vez, isso aparece em plena luz: durante a peregrinação anual a Jerusalém em que pela primeira vez tomou parte, com os seus, aos doze anos, segundo o costume. É S. Lucas quem no-lo conta: «Iam seus pais todos os anos a Jerusalém, pela festa da Páscoa. E quando chegou aos doze anos, subiram eles até lá, segundo o costume da festa. Quando chegaram ao fim desses dias, o Menino Jesus, ao regressarem, ficou em Jerusalém, sem que os seus pais soubessem. Pensando que Ele se encontrava na caravana, fizeram um dia de viagem e começaram a procurá-Lo entre parentes e conhecidos. Não O encontrando, voltaram a Jerusalém à sua procura. E depois de três dias acharam-No no Templo, sentado no meio dos doutores, a ouvi-los e a fazer-lhes perguntas. Estavam pasmados todos aqueles que O ouviam, com a sua inteligência e as suas respostas. Quando O viram, ficaram assombrados e sua mãe disse-Lhe: «Filho, porque procedeste assim conosco? Olha que teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura». Ele respondeu-lhes: «Porque Me procuráveis? Não sabíeis que Eu tenho de estar em casa de meu Pai? Mas eles não entenderam as palavras que lhes disse». Veio para o Templo, e foi como se algo se erguesse em Si e de Si se apoderasse. Desaparecida a mãe; desaparecido José; desaparecidos os companheiros de viagem! E como Maria, dominada pela angústia, Lhe pergunta: «Filho, porque procedeste assim connosco? Olha que teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura» — pergunta Ele por seu turno, com um espanto que mostra como era diferente deles: «Porque Me procuráveis? Não sabíeis que Eu tenho de estar em casa de meu Pai?».
E a seguir: «Depois, desceu com eles, veio para Nazaré e era-lhes submisso.»
E finalmente: «E Jesus ia crescendo em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos Homens» (Lucas, 2, 41-52).