Escolástica — Razão e Fé
Nicola Abbagnano: Excertos de História da Filosofia
É evidente que o problema da relação entre razão e fé não é um problema puramente especulativo. É também um problema especulativo considerável se nos basearmos no confronto entre os textos filosóficos e os textos religiosos e as suas interpretações e implicações; mas não é apenas isto. É sobretudo o problema do papel que pode e deve ter a iniciativa racional do homem na busca da verdade e da direção da vinda individual e coletiva, perante a posição que deve ocupar a ordem cósmica e a hierarquia que a representa. Por isso é também o problema da liberdade que o homem pode reivindicar por si e das limitações que tal liberdade deve encontrar as hierarquias que governam o mundo. É, em suma, o problema dos novos domínios da indagação (a natureza, a sociedade) que se apresentam ao homem à medida que ele reivindica, pela sua razão, uma maior autonomia. Se designarmos, nos termos que assim ficam expostos, o «problema escolástico» pode ser facilmente abordado para se poder dar conta da continuidade e da variedade, das concordâncias e das polêmicas do pensamento medieval. Isso pode permitir que nos apercebamos de que a ortodoxia e a heterodoxia religiosas fazem parte igualmente deste pensamento como fazem parte as especulações políticas e os interesses, que se mantiveram ou ressurgiram, pela natureza e pela ciência; e que as tendências heréticas, as rebeliões filosóficas, teológicas ou políticas que, em certa medida, sempre o caraterizaram, não constituem os aspetos históricos fundamentais a mesmo título que as grandes sínteses doutrinais nas quais a iniciativa racional do homem e as exigências da fé e da hierarquia eclesiástica parecem ter encontrado um compromisso efetivo. O que este conceito do problema escolástico pretende excluir é a tentativa de considerar a própria escolástica no seu conjunto como uma síntese doutrinal homogênea na qual se hajam unificado e fundido os contributos individuais. Esta noção da escolástica parece sugerida pela vontade de privilegiar o aspeto da existência (real ou presumida) de uma concordância plena e definitiva entre a razão e a fé: aspeto que é caraterístico da síntese tomista. Mas este privilégio não tem nenhuma base histórica e não terá outro efeito que o de excluir da escolástica, considerada como a única filosofia existente na Idade Média, uma parte importante dos pensadores medievais. Uma preferência ideológica, historiograficamente insustentável, está na base deste privilégio. A filosofia medieval, tal como a filosofia de qualquer outro período, pode ser descrita e caraterizada apenas com base no seu problema dominante, e não nas soluções que foram dadas a esse mesmo problema. A continuidade desta filosofia pode ser reconhecida apenas com o fundamento da unidade do seu problema e das diferenças nas soluções apresentadas. E a periodização da mesma pode ser efetuada apenas com base na prevalência de uma ou de outra das soluções fundamentais.