Esquecimento da condição de “Filho” [MHSV]

Na Preocupação, o esquecimento pelo homem de sua condição de Filho assume sua forma extrema. A este respeito, o esquecimento procede diretamente do sistema do egoísmo, o qual procede da ilusão transcendental do ego. Por efeito desta ilusão, no interior desse sistema, na Preocupação, apoiando-se sobre si mesmo e consciente de agir a partir de si mesmo, o ego lança-se a objetivos que são suas próprias possibilidades vindouras, lança-se fora de si para si, de modo que nunca atinge a si mesmo, não atinge nunca este fim que é ele mesmo para si mesmo em forma de possibilidades diversas. E isso porque fora de si, no “aí fora” do mundo, não há nenhum Si. Ilusão transcendental do ego, sistema do egoísmo, Preocupação – essas três formas superpostas e conjuntas do esquecimento de si têm, todavia, uma pressuposição comum: que o Si se deixa esquecer quando, na Preocupação, o ego só se preocupa consigo, ou quando, no egoísmo, só pensa em si. Essa pressuposição foi evocada a propósito da ilusão transcendental do ego e precisamente como sua condição: é o estatuto fenomenológico da Vida, sua dissimulação original e essencial, o que a mergulha num esquecimento aparentemente insuperável. E este esquecimento da Vida que deve ser agora objeto de uma elucidação radical.

Nós entendemos o esquecimento antes de tudo como um modo do pensamento. Esquecemos aquilo em que não pensamos ou já não pensamos. Pensar em algo é reportar-se intencionalmente a ele, dirigir a ele o olhar de modo que aquilo em que se pensa surge então diante desse olhar, nesse “aí fora” que é a verdade do mundo. Enquanto dirigimos o olhar a esse algo, precisamente pensamos nele, não o esquecemos. Ao contrário, assim que a mira de nosso pensamento se desvia dele, nós o esquecemos. No entanto, de tudo o que esquecemos desse modo podemos sempre lembrar-nos. De tudo o que se mostra a nós na verdade do mundo nós nos lembramos e nos esquecemos alternadamente. [209]

Não é o caso da Vida. Na Vida não há nenhum “aí fora”, nenhum espaço de luz em que um olhar do pensamento possa penetrar, perceber o que quer que seja diante de si. Porque a Vida não é separada de si, porque nunca se põe distante de si, ela é incapaz de pensar em si e, por exemplo, lembrar-se de si. A Vida é esquecimento, esquecimento de si em sentido radical. O esquecimento em que a Vida está com respeito a si não tem nada que ver com o esquecimento do pensamento com respeito ao que se mostra na verdade do mundo, o qual, como acabamos de ver, é sempre suscetível de se transformar na lembrança correspondente. Ao passo que o esquecimento da Vida é definitivo, insuperável. A Vida é sem memória. Não por efeito de uma distração ou de alguma disposição infeliz: a Vida é sem memória porque nenhuma intencionalidade, nenhum desígnio de um objectum qualquer é capaz de acontecer nela, de se interpor entre ela e ela. Enquanto ela escapa a qualquer memória concebível, a Vida é o Imemorial. É porque a Vida escapa a qualquer memória possível que o homem esquece sua condição de Filho – na medida em que essa condição é a de um vivente cuja essência é a Vida.