Erigena Mal

ESCOTO ERIUGENA — ANÁLISE DO TRATADO «DA DIVISÃO DA NATUREZA».

Nicola Abbagnano — História da Filosofia
O MAL E A LIBERDADE HUMANA
Esta mesma posição leva João Escoto a modificar a doutrina agostiniana da liberdade humana. De Santo Agostinho, retoma o ponto de partida para a sua doutrina do mal. Que o mal não é uma realidade, mas uma negação da realidade, é para Escoto Erígena um pressuposto evidente. Deste pressuposto tira a conclusão de que Deus não conhece o mal. Com efeito, o conhecimento divino é imediatamente criador: Deus não conhece as coisas que são, porque são: mas as coisas são porque Deus as conhece. A causa da sua essência é a ciência divina. Tudo o que é, é pensamento divino. O homem é definido por Escoto como «uma noção intelectual eternamente criada na mente divina»; e esta mesma definição aplica-se a tudo o que existe (IV, 7). Daqui se conclui que se Deus conhecesse o mal, se o mal fosse um pensamento divino, o mal seria real no mundo (II, 28). Mas o mal não é real. Não é algo substancial e as próprias aparências sedutoras de que se reveste perante os homens maus, não são por si, más. Um objeto belo e precioso que inspira ambição no avarento pode inspirar, pelo contrário, admiração desinteressada no homem sábio. Não é, portanto, a aparência bela que leva ao pecado e é por si o mal, mas a disposição maléfica daquele que a contempla (IV, 16). Do mal, que não é realidade, não há portanto em Deus presciência; nem tão-pouco predestinação. A pena que recai sobre o que peca não foi predestinada por Deus; pois também ela é dor e privação, e não uma realidade positiva. A pena é consequência do pecado e segue-se como se estivesse ligada a ele por uma corrente; mas nem a pena, nem o pecado subsistem na mente divina, na qual apenas encontra lugar o ser e o bem (De praedest., 15, 8). Quando as Sagradas Escrituras falam de predestinação ou de presciência divina do mal, há que entender estas expressões no sentido com que nós costumamos saber que, depois do sol se pôr vêm as trevas, que o silêncio vem depois das aclamações e a tristeza depois da alegria. Mas as trevas, o silêncio, a tristeza, não são mais que noções negativas e indicam apenas a ausência das realidades positivas correspondentes (Ibid., 15, 9).

Para Escoto, tal como para Santo Agostinho, o mal reduz-se ao pecado, à deficiência ou ausência de vontade. Mas enquanto para Santo Agostinho a vontade livre é unicamente a vontade do bem, para Escoto Erígena a vontade livre é o livre arbítrio, capaz de decidir-se quer pelo bem, quer pelo mal. É certo que a causa do pecado está na mutabilidade da vontade. Esta mutabilidade, que é causa do mal, é certamente ela própria um mal (De div., nat, IV, 14). Mas sem ela o homem não seria verdadeira e plenamente livre. Se Deus tivesse dado ao homem apenas a capacidade de querer o bem e de viver de acordo com a justiça, de forma a que o homem só se pudesse mover numa direção, o homem não seria absolutamente livre, mas apenas livre em parte e em parte não livre. Ora uma liberdade parcial não é possível. Se mesmo numa parte mínima o homem não é livre, ele é absolutamente não-livre. Um livre arbítrio que oscila não pode permanecer de pé {De praedest., 5, 8). Se se afirma que não viria dano ao homem pelo fato de possuir um livre arbítrio claudicante, poderá objetar-se que sem um verdadeiro e total livre arbítrio a justiça divina não poderia exercer-se. Uma vez que a justiça consiste em dar a cada um o que é seu, e da parte de Deus em reconhecer a cada homem o mérito de haver obedecido aos seus preceitos. Mas que significado poderiam ter esses preceitos para um homem que apenas pudesse fazer o bem? Deus teve portanto, que dar ao homem um livre arbítrio pelo qual ele pudesse pecar ou não pecar. Só um livre arbítrio assim criado torna o homem capaz de usufruir livremente a ajuda que lhe oferece a graça divina (Ibiã., 5, 9).

A liberdade do homem consiste portanto na possibilidade de pecar ou não pecar, uma vez que só essa possibilidade torna o homem susceptível de ser premiado ou castigado segundo um juízo. E como só a vontade dotada de livre arbítrio é responsável pelo pecado, só a vontade pode ser castigada por Deus. Também os juízes humanos, se não são impelidos pela sede de vingança, têm em vista a correção dos réus e castigam não a sua natureza, mas apenas os seus delitos. Do mesmo modo, a punição divina do pecado dirige-se apenas à vontade que cometeu o pecado, mas deixa íntegra e salva a natureza do pecador, que permanece capaz de regressar a Deus, no triunfo final (V, 31). Para este triunfo o homem é ajudado tanto pela sua natureza como pela graça divina. O homem deve à própria natureza o haver sido retirado do nada e existir; à graça deve a sua deificatio pela qual regressa à substância divina. A natureza é dada, a graça é um dom gratuito, concebido pela divina bondade sem que tenha havido mérito por parte do homem.