ESCOTO ERIUGENA — ANÁLISE DO TRATADO «DA DIVISÃO DA NATUREZA».
Nicola Abbagnano — História da Filosofia
A PRIMEIRA NATUREZA: DEUS
A primeira natureza é Deus, na medida em que não tem princípio, e é a causa principal de tudo o que procede d’Ele. Com efeito, Deus é o princípio, o meio e o fim: é princípio na medida que d’Ele derivam todas as coisas que participam da essência; é o meio, na medida em que n’Ele e por Ele subsistem e se movem todas as coisas; é o fim, na medida em que todas as coisas se movem para Ele, em busca do repouso do seu movimento e da estabilidade da sua perfeição (I, 11). Como princípio, meio e fim, a natureza divina não se limita a criar, é também criada. É criada por si própria nas coisas que ela própria cria, tal como o nosso inteleto se cria a si próprio através dos pensamentos que formula e das imagens que recebe dos sentidos (I, 12). Deus é incriado, no sentido em que não é criado por outro; como tal está acima de todos os seres e não pode ser compreendido nem definido adequadamente. É unidade, mas unidade inefável que não se encerra esterilmente na sua singularidade; articula-se em três substâncias: a substância ingênita, o Pai; a substância gênita, o Filho; a substância procedente da ingênita e da gênita, o Espírito Santo. João Escoto vai buscar ao Pseudo-Dionísio, a distinção das duas teologias: a positiva e a negativa. A primeira afirma de Deus todos os atributos que lhe correspondem. A outra nega que a substância divina possa ser determinada mediante os caracteres das coisas que são; isto é: que possa ser de algum modo compreendida ou exprimida.
Mas os mesmos caracteres que a teologia positiva atribui a Deus assumem nesta referência um valor diferente daquele que possuem quando se referem às coisas criadas. Deus não é propriamente essência, mas super-essência; não é verdade, mas supra-verdade, e o mesmo se deve dizer de todos os caracteres positivos que possam ser atribuídos a Deus. De modo que a própria teologia positiva é na realidade negativa; a menos que não se lhe queira chamar positiva e negativa ao mesmo tempo; uma vez que, dizer que Deus é a super-essência, equivale a afirmar e negar ao mesmo tempo que ele seja essência (I, 14). É certo que a Deus não se pode atribuir nenhuma das categorias aristotélicas que, referidas a ele, assumem um significado diferente. Se Deus caísse no âmbito de algumas categorias seria um gênero (como, por exemplo, animal). Ora Deus não é nem gênero nem espécie nem acidente e, deste modo, nenhuma categoria pode propriamente qualificá-lo (1-15). A conclusão é de que tudo o que a razão humana pode conseguir em relação a Deus é demonstrar que nada se pode propriamente afirmar d’Ele. «Ele supera todo o entendimento e todo o significado sensível e inteligível, de modo que o conhecemos ignorando-o, e a ignorância acerca dele é a verdadeira sapiência» (I, 66).
Mas se Deus é inacessível como natureza supra-essencial revela-se por si próprio na criação, que é uma contínua manifestação d’Ele ou teofania. A essência divina, que é em si incompreensível, manifesta-se nas criaturas intelectuais e é possível conhecê-la nelas. Teofania é o processo que desce de Deus ao homem através da graça, para regressar do homem a Deus, com o amor. Teofania significa, também, toda a obra de criação, enquanto manifeste a essência divina, que deste modo se torna visível nela e através dela (I, 10; V, 23). Cada uma das pessoas divinas tem a sua própria função no processo da teofania. O Pai é o criador de tudo; o Filho cria as causas primordiais das coisas que subsistem nele de forma universal e simples; o Espírito Santo multiplica estas causas primordiais nos seus efeitos; isto é, distribui-as por gêneros e espécies, por números e diferenças, quer se trate das coisas celestiais, quer das sensíveis (II, 22).