EPÍSTOLAS PAULINAS E GNOSTICISMO
Excertos do Estudo de R. Kuntzmann e J.-D. Dubois sobre a Biblioteca de Nag Hammadi
As epístolas paulinas teriam sido influenciadas pela gnose?
a) Um dos domínios em que se pretendeu ver a influência da terminologia gnóstica sobre Paulo é sem dúvida naquilo que se denominou de “dualismo antropológico”. Muitas vezes, na pena do apóstolo Paulo, pode-se encontrar a oposição fundamental entre a carne e o espírito (Rm 7,5ss.l8ss; 8; Gl 3,3; 4,21ss; 5,13ss; 6,8) e a oposição análoga entre o homem carnal e o homem espiritual, com diversos termos diferentes (1Cor 2,13-3,4; Rm 7,14), homem terreno e homem celeste (1Cor 15,44ss), homem interior e homem exterior (Rm 7,22; 2Cor 4,7.16; 5,1; Ef 3,16). Toda a terminologia empregada tem raízes na antropologia do Antigo Testamento, que não manifesta oposição antitética análoga às epístolas paulinas (Rm 8,5; 1Cor 2,13ss). Como os gnósticos, Paulo parece utilizar as classes de seres humanos (carnais, psíquicos, espirituais), mas não lhes dá o mesmo tipo de conteúdo. Nos textos de Paulo, não se trata de colocar os seres espirituais à parte, em oposição aos “fracos”, que seriam apenas carnais: para ele, trata-se de descrever a situação pecadora do ser humano diante de Deus e os meios de se regenerar através do Espírito (Rm 7-8). Sem dúvida, pode-se explicar o pensamento paulino a partir das tradições sapienciais do judaísmo helenístico. Mas, em Paulo, não se encontra aquilo que textos como o a Hipóstase dos Arcontes desenvolvem abundantemente: o aprisionamento da carne nas mãos demoníacas das forças celestes, que só o espírito poderá vencer.
b) Voltando-nos para a cristologia paulina, podemos notar que, frequentemente, releva-se que a ideia de um Cristo idêntico ao Espírito (2Cor 3,17) coaduna-se bem com as concepções gnósticas de um Cristo espiritual, pré-existente, enviado incógnito para a terra (1Cor 2,8) para a salvação dos homens, encarregado de descer o mais baixo possível para assumir a condição humana (Rm 8,3; Gl 4,4) e, após a ascensão, retornar a seu estado espiritual inicial (cf. Fl 2,6.9; 1Cor 15,25; Ef 4,8ss; 1Tm 3,16). Não há dúvida de que se podem fazer essas concepções remontar às representações judaicas da Sabedoria divina e da Palavra de Deus, reutilizadas na apocalíptica. Mas é difícil dizer que a figura concreta de um Salvador enviado do céu para a terra encontra-se nos textos gnósticos anteriores ao cristianismo. Se esse tipo de representação do Salvador encontra-se nos textos gnósticos do século II, devemos ver nele muito mais a influência das tradições do cristianismo primitivo.
Nas epístolas aos Colossenses e Efésios, ao contrário, as relações entre a cabeça e o corpo de Cristo e entre Cristo e a Igreja (Cl 1,18; 2,19; Ef 1,10.22) evocam numerosas especulações gnósticas sobre a figura de um microcosmos terreno construído sobre o modelo e em relação com um macrocosmos celeste. Nesse caso, Jesus é muitas vezes descrito com os traços de homem gigantesco, formado de todas as parcelas de luz que se encontram na alma dos gnósticos. Nesse sentido, pode-se falar de pleroma (Cl 1,19; 2,9): Cristo vence as forças (Cl 1,13; 2,15) que antes dominavam o mundo e seus habitantes.
Na epístola aos Efésios, a insistência na unidade da Igreja, na comunidade espiritual entre seus membros (2,16.18.22) e na necessária comunhão sizígica entre Cristo e a Igreja (1,22-23; 4,15; 5,23ss) poderia se expressar em numerosos textos gnósticos, bem como o fragmento litúrgico de 3,14-21 ou o hino de 5,14, típico do apelo gnóstico a sair do sono. Entretanto, a nova criação em Cristo, tendo em vista as boas obras (2,8ss), serve de correção a uma perspectiva gnóstica, que se esqueceria das exigências morais da fé.
c) A partir dessa cristologia pode-se deduzir uma concepção da Igreja como comunidade de crentes unidos a seu Salvador: a ceia de comunhão (1Cor 10,16ss) é participação no corpo de Cristo; o batismo é batismo em um só corpo (1Cor 12,13; Gl 3,27); um mesmo Espírito engloba os membros da Igreja (1Cor 12,13b), que, reunidos, formam o corpo de Cristo (Rm 12,5; 1Cor 6,15; 12,27); “ser em Cristo” (2Cor 5,17) é participar dos bens espirituais (Rm 8,9) e da vida eterna (Rm 6,23; 2Cor 4,16-18). Nesse sentido, pode-se falar de “mística”13, como neste versículo dirigido aos gálatas: “Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim” (2,20; cf. também 4,19). Poderíamos alongar a lista das passagens que mereceriam ser tratadas aqui, mas basta fazer notar que há material suficiente para comparar sistematicamente as relações dos crentes com seu Salvador, tanto nos textos de Paulo como nos documentos gnósticos.
Estudos:
*CORPUS PAULINUM E GNOSTICISMO