Epístola de Pedro a Felipe [KDNH]

BIBLIOTECA DE NAG HAMMADI
Excertos de do livro de R. Kuntzmann e J.-D. Dubois, trad. de Álvaro Cunha
Epístola de Pedro a Filipe (VIII,2)
Tradução de JrE. Ménard, in BCNH, n.° 1, 1977.

Este tratado é o terceiro texto que Nag Hammadi atribui ficticiamente a Pedro, seguindo-se a Atos de Pedro e dos Doze Apóstolos (Códice VI) e Apocalipse de Pedro (Códice VII). Em seu conjunto, o texto está bem conservado. É livreto de gnose cristã que segue o esquema das revelações, por intermédio do diálogo entre Jesus e seus discípulos. A cena se passa no monte das Oliveiras, “lugar onde eles se reuniam com o Cristo bendito, quando ele estava em corpo” (p. 133,15-17). O mestre junta-se aos apóstolos, que lhe propõem quatro perguntas, relativas à deficiência dos Eões, à natureza do Pleroma, ao aprisionamento dos seus pelas Potestades e ao combate dos espirituais contra as Potestades:

Então, apareceu uma grande luz, de modo que o monte resplandeceu em seguida a essa manifestação. E uma voz ressoou até onde eles estavam, dizendo: “Escutai minhas palavras, pois (eu) venho para falar-vos. Por que me procurais? Eu sou Jesus, o Cristo, que veio para junto de vós até a eternidade”. Então, os apóstolos responderam, dizendo: “Senhor, nós queremos compreender a Deficiência dos Eões e teu Pleroma”. E ainda: “Como é que somos retidos nesta morada? Como viemos para este lugar? De que modo sairemos dele? Como é que possuímos (a liberdade) de palavra? Por que as Potestades nos combatem?” Então chegou-lhes uma voz da luz, dizendo: “Sois vós mesmos que testemunhais que eu vos disse todas essas coisas. Mas, por causa de vossa incredulidade, falarei novamente” (p. 134,9-135,8).

Eis a resposta do Salvador para a primeira pergunta, dando uma visão do mundo invisível:

Primeiro ponto: a Deficiência dos Eões. Eis em que consiste, a Deficiência. Quando a desobediência e o desvario da Mãe se manifestou contra a ordem estabelecida pela grandeza do Pai, ela quis suscitar Eões. E, quando ela falou, apareceu Autades. Depois, quando ela deixou uma porção (dela mesma), Autades dela se apoderou e isso tornou-se uma Deficiência. Tal é a Deficiência dos Eões. E, quando Autades recebeu uma porção, semeou e estabeleceu Potestades sobre ela e as Autoridades e a aprisionou entre os Eões mortos. E todas as Potestades do mundo se rejubilaram por terem sido geradas. Entretanto, elas não conhecem o Pai (que é) pré-existente — da mesma forma, elas lhe são estranhas — mas aquele que foi dotado de força e celebrado por louvações. Ora, Autades orgulhava-se da louvação das Potestades. Ele tornou-se um contrafautor e quis modelar imagem por (imagem) e forma por (forma). E ele encarregou as Potestades sob a sua autoridade de modelarem corpos mortos. E estes tiveram a sua origem em uma contrafação da ideia pré-existente (p. 135,8-136,15).

No fim, o texto estabelece uma interessante distinção entre o sofrimento de Jesus e o dos discípulos:

(Pedro) assim falou: “Nosso luminar, Jesus, desceu, foi crucificado e carregou uma coroa de espinhos, vestiu-se com vestes de púrpura, foi (pregado) no madeiro, foi sepultado em uma tumba e ressuscitou dos mortos. Meus irmãos, Jesus é estranho a esse sofrimento, mas fomos nós que sofremos pela transgressão da Mãe. E, assim, ele cumpriu todas as coisas em aparência, por nosso intermédio (p. 139,15-25).

Trata-se aqui de uma visão docetista da paixão: são os discípulos que sofrem. Eles constituem os membros daquilo que o maniqueísmo chamou de Jesus patibilis, um Jesus formado pelo conjunto das parcelas de luz sofredora porque caída na matéria.

O texto conclui com uma espécie de envio litúrgico em missão:

Então, Pedro e os outros apóstolos viram Cristo e foram preenchidos por um Espírito Santo. E cada qual passou a operar curas. E eles se dividiram para anunciar o Senhor Jesus e voltaram a se juntar a seus companheiros, abraçando-os e dizendo “Amém”. Então, Jesus apareceu-lhes, dizendo-lhes: “Que a paz esteja convosco e com quem quer que creia em meu nome. E, quando partirdes, que haja em vós alegria, graça e força. E não temais, pois eis que estou convosco pela eternidade”. Então, os apóstolos foram divididos tendo em vista as quatro mensagens, para pregar, e foram-se na força de Jesus, em paz (p. 140,7-27).

Definitivamente, esta epístola é gnóstica: graças à gnose, os apóstolos podem tornar-se missionários e, ao preço do sofrimento, salvar os homens perdidos no mundo material dos arcontes. E sua recompensa será o “repouso”, forma gnóstica da salvação.