Enoque 3

ENOQUE 3
(Excertos de Harold Bloom, “PRESSÁGIOS DO MILÊNIO“)

É surpreendente quanta invenção mitopoética entra em Enoque 3, talvez porque estejamos num estágio inicial do que se desenvolverá, meio milênio depois, na extravagante imaginação cabalista. No centro imagístico de Enoque 3 está a radical transformação de Enoque no arcanjo Metatron, Príncipe da Divina Presença (um título que vem do profeta Isaías) e uma espécie de vice-rei do próprio YHWH. Nessa transmutação, a pele de Enoque é substituída por um ígneo traje de luz, e suas dimensões humanas ampliam-se até o comprimento e a largura do mundo criado. Moshe Idel, principal estudioso contemporâneo da Cabala, observa argutamente que a apoteose de Enoque é a inversão, ponto por ponto, do colapso do “celeste Adão” para o Adão do Gênesis, uma vez que os textos judaicos antigos, normativos e heterodoxos, inicialmente representavam Adão como um homem-deus cujo traje de luz é substituído por sua própria pele e as peles animais com que Deus o veste, enquanto o Adão gigante primordial, cujo tamanho e esplendor impressionaram e assustaram os anjos, reduz-se a nossos contornos meramente humanos. Idel também observa a ironia de outra inversão: em algumas fontes, o Adão primai “cai” por pecado angélico, pois seu) esplendor leva os anjos a afirmar que Adão e Deus são poderes iguais.

Em Enoque 3, um trecho interpolado registra a culpabilidade de Elisha ben Abuya, o colega de Ishmael e Akiba no século 2 da E.C. Elisha ben Abuya foi condenado como herege pelo Talmude por suas supostas heresias gnósticas. Enfrentando Metatron, Acher (“o outro”), como era chamado Elisha ben Abuya pelos rabinos, brada: “Há dois Poderes no Céu!”, com isso condenando Metatron a um castigo divino. Eu ampliaria a intuição de Idel sugerindo que Metatron não só é o novo Adão primordial, celeste, mas também se toma o elo esotérico na angelologia entre o divino e o humano, fundindo esses domínios na forma do “homem de luz” iraniano, zoroastriano ou sufista. Enoque foi rebatizado como Idris pelo Corão, e os sufistas identificaram Idris com o antigo Hermes, lembrando que o Corpus Hermeticum se centrava na imagem de Hermes como a Perfeita Natureza, a união de homem e Deus. Metatron bem poderia ser interpretado como o anjo único da reintegração, que é o motivo pelo qual se tornou o mais importante dos anjos para o Zohar e para toda a Cabala posterior. Arrisco-me a dizer que Metatron é o arcanjo de nosso momento, quando nos aproximamos do Milênio: todos os augúrios — outros anjos, sonhos proféticos, manifestações do corpo de ressurreição — são aspectos do seu ser. Como YHWH menor, é o anjo dos anjos; é também o intérprete celeste dos sonhos proféticos; sua forma transfigurada é o corpo astral da experiência de quase morte; sua reintegração Deus-homem restaura o Adão celeste; e ilumina os aspectos messiânicos do Milênio.

Em Enoque 3, Metatron é apresentado com certa reticência; o ardor apocalíptico do texto é frequentemente temperado por um censor normativo, refletindo a curiosa natureza dessa obra, que parece ter uma prolixidade de autores, alguns deles evidentemente redatores normativos posteriores. Daí o espantoso contraste entre sucessivas partes de Enoque 3, as 15 e 16. Eis a 15:

R. Ishmael disse: O anjo Metatron, Príncipe da Divina Presença, glória do mais alto céu, me disse a mim:

Quando o Ente Sagrado, bendito seja, me levou para servir _ ao trono da glória, às rodas da carruagem e a todas as necessidades da Shekinah, de repente toda a minha carne virou chamas, meus tendões fogo vivo, meus ossos carvões de junípero, meus cílios clarões de raio, meus olhos tochas ígneas, os cabelos da cabeça quentes labaredas, todos os meus membros asas de fogo ardente, e a substância de meu corpo uma conflagração de chamas. À minha direita — aqueles que abrem chamas de fogo — à minha esquerda — marcas ardentes — à minha volta açoitavam vento, tempestade e temporal; e o rugir do terremoto à minha frente e às minhas costas.

A Shekinah, o elemento feminino de YHWH, sua presença orientadora no mundo, é servida por Metatron quando ele serve ao trono e carruagem divinos. Como a Shekinah habita entre nós, isso quer dizer que Metatron é o grão-vizir de YHWH, na terra como no céu. A magnífica metamorfose, aqui, de Enoque, um homem mortal, no YHWH menor contrasta arrasadoramente com o posterior açoitamento e des-tronamento de Metatron, não por culpa sua, uma vez que não é de modo algum responsável pelo herético Acher:

R. Ishmael disse: O anjo Metatron, Príncipe da Divina Presença, glória do mais alto céu, me disse a mim: A princípio sentei-me num grande trono à porta do sétimo palácio, e julguei todos os habitantes das alturas com a autoridade do Ente Sagrado, bendito seja ele. Distribuía grandeza, realeza, título, soberania, glória, louvor, diadema, coroa e honra a todos os príncipes dos reinos, quando me sentava na corte celeste. Os príncipes dos reinos estavam de pé diante de mim, à minha direita e à minha esquerda, por autoridade do Ente Sagrado, bendito seja ele. Mas quando Acher veio contemplar a visão da carruagem e me viu, teve medo e tremeu diante de mim. Sua alma ficou alarmada a ponto de deixá-lo por causa de seu medo, pavor e terror de mim, quando me viu sentado num trono como um rei, com anjos para me servir a meu lado como criados e todos os príncipes dos reinos coroados com coroas à minha volta. Então ele abriu a boca e disse: “Na verdade há dois poderes no céu!” Imediatamente, uma voz divina veio da presença da Shekinah e disse: “Voltai a mim, filhos apóstatas — menos Acher!” Então Anapi’el YHWH, o honrado, glorificado, amado, maravilhoso, terrível e temido Príncipe, veio a mando cio Ente Sagrado, bendito seja ele, e me deu sessenta açoites de fogo e me fez ficar de pé.

Metatron tinha seu trono à porta do sétimo palácio porque Enoque 3 partilha com vários textos gnósticos antigos o mito de uma ascensão celeste da alma, nesta vida em obras judaicas como Enoque 3, mas após a morte nos textos gnósticos. Essa jornada para o alto é sempre em sete etapas, ou palácios na tradição Merkabah. Num texto gnóstico como A hipóstase dos arcontes, a alma é detida em cada uma das sete esferas, onde um espírito negativo, o arconte ou governante daquela esfera, barra a alma aspirante, a não ser que ela saiba e diga o verdadeiro nome dele e lhe mostre precisamente o selo adequado. Em Enoque 3, os céus são numerados, mas não nomeados, embora seus anjos governantes sejam referidos pelo nome. Os sete palácios (ou templos, ou céus) são dispostos de forma concêntrica, e no centro está a Merkabah, a carruagem de Deus que é também o seu trono. Diante do trono, uma cortina protege os anjos da perigosa radiação de Deus, e tem bordada em si toda a extensão da história, de Adão à era do Messias. Rios de fogo correm de debaixo do trono, e a aura da cena é adequadamente brutal. Os angélicos guardiães dos portões não são exatamente tão hostis quanto os arcontes gnósticos, mas sem dúvida tampouco são amistosos. Em essência, são barreiras entre Deus e o homem, a não ser pelo problemático Metatron, que é tão protetor de Deus quanto os outros, mas retém seu status quase único de mortal transfigurado. A fórmula cabalística tornou-se: “Enoque é Metatron”, uma maneira abreviada de sugerir que o místico pode emular outro humano e alçar-se ao status do arcanjo Miguel (com quem Metatron é às vezes identificado).

Como Adão caiu, assim foi Enoque elevado, e a demarcação entre homem e Deus balançou, e pode voltar a balançar. Para mim, o trecho mais memorável em Enoque 3 está na parte 6, quando os anjos desprezam e protestam contra a apoteose de Metatron, que foi Enoque:

Assim que alcancei as alturas celestes, as sagradas criaturas, o orfânio, o serafim, o querubim, as rodas da carruagem e os ministros de fogo consumidor sentiram o meu odor a 365 mil miríades de parasangas de distância, e disseram: “Que é esse cheiro de alguém nascido de mulher? Por que uma gota branca ascende ao alto e serve entre nós que abrimos as chamas?”

Isso é um grandioso e breve resumo daquilo que nossa atual sentimentalização obscurece e rebaixa: a profunda ambivalência dos anjos para conosco. O desprezo angélico provocado pela sexualidade humana: aquela “gota branca” é a contribuição de Jarede, o pai, para o engendramento de Enoque. A resposta de Deus aos anjos é ao mesmo tempo uma maciça reprovação e uma pungente queixa contra nós: “Este que tomei é minha única recompensa de todo o meu mundo sob o céu.”