Mircea Eliade — Jan van Ruysbroeck
Excertos de “História das Crenças e das Ideias Religiosas”:
Em que pese a ter criticado com severidade as beguinas e os adeptos do Livre Espírito, o grande místico flamengo Ruysbroeck (1293-1381) também não escapou às suspeitas do magistério1. A maior parte de seus 11 escritos cuja autoria é incontestável diz respeito à orientação espiritual. Ruysbroeck examina detidamente o erro dos “hereges” e dos “falsos místicos”, que confundem a vacuidade espiritual com a união em Deus: não se pode conhecer a verdadeira contemplação sem a prática cristã e a obediência à Igreja; a unio mystica não se efetua “naturalmente”, mas é um dom da graça divina.
Ruysbroeck não ignorava o risco de ser mal interpretado; por essa razão, não estimulou a circulação de certas obras, redigidas exclusivamente para leitores bastante adiantados na prática da contemplação2. Apesar disso, foi mal compreendido e atacado por Jean_Gerson, reitor da Universidade de Paris. E até Geert_Groote, seu mui sincero admirador, reconhecia que o pensamento de Ruysbroeck podia suscitar confusões. Na verdade, embora salientando a necessidade da prática, Ruysbroeck afirma que a experiência da contemplação se efetua num plano superior. Esclarece que, mesmo durante essa experiência privilegiada, “não nos podemos tornar plenamente Deus e perder nossa modalidade de um ser criado” (A Pedra Cintilante). Essa experiência, no entanto, realiza “uma unificação na unidade essencial de Deus”, a alma do contemplativo “estando contida na Santíssima Trindade” (Casamentos Espirituais, III, Prólogo; ibid., III, 6). Ruysbroeck lembra, porém, que Deus criou o homem à Sua imagem, “como um espelho vivo no qual imprimiu a imagem da Sua natureza”. Acrescenta que, para compreender essa verdade, profunda e misteriosa, o homem “deve morrer para si mesmo e viver em Deus” (ibid., III, Prólogo).
NOTAS:
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Ordenado padre em 1317, Ruysbroeck recolheu-se, em 1343, com um grupo de contemplativos, a um eremitério, que não tardou a converter-se em mosteiro segundo a regra agostiniana; ele veio a falecer ali aos 88 anos de idade. ↩
Ele escreveu mais tarde O Livrinho da Iluminação para tornar acessível o difícil Reino do Amor. A essência da doutrina de Ruysbroeck está compendiada no extenso tratado Casamentos Espirituais — sua obra-prima —, e num opúsculo: A Pedra Cintilante. ↩