Mircea Eliade — História das Crenças e das Idéias Religiosas
Nicolau de Cusa
Nicolau Krebs, nascido em Cusa em 1401, também iniciou seus estudos num internato dirigido pelos Irmãos da Vida comum. Certos autores reconhecem os sinais dessa primeira experiência no desenvolvimento espiritual do futuro cardeal (Ernst Cassirer, The Individual and the Cosmos in Renaissance Philosophy, PP. 33, 49). Muito cedo descobriu Nicolau de Cusa as obras de Mestre Eckhart e do Pseudo-Areopagita; foram esses dois teólogos místicos que orientaram e alimentaram seu pensamento. Contudo, a sua cultura universal (ele domina as matemáticas, o direito, a história, a teologia, a filosofia), a profunda originalidade de sua metafísica e sua excepcional carreira eclesiástica fazem de Nicolau de Cusa uma das figuras mais complexas e mais atraentes da história do cristianismo.
Depois de haver freqüentado várias universidades célebres (entre outras, a de Pádua, de 1417 a 1423), é consagrado padre e, por volta de 1430, decano da Catedral de São Florentino em Coblença. É admitido no Colégio de Basiléia em 1432; entretanto, volta a tomar o partido do papa Eugênio IV, e este o envia, como legado, a Constantinopla para convidar o Patriarca do Oriente e o imperador João Paleólogo a participarem do Concilio de Florença, onde se prepararia a união das Igrejas. No intervalo que medeia entre duas de suas obras mais importantes — De Docta Ignorantia (1440) e De Visione Dei (1453) —, Nicolau de Cusa é elevado ao posto de cardeal (1448) e de bispo de Brixen (1450). Em Brixen, entra em conflito com o duque Sigismundo do Tirol (1457) e retira-se para Roma, dedicando os últimos anos de vida a seus trabalhos. Faleceu em Todi (Úmbria), no ano de 1464.
Seria inútil pretender dar uma apresentação condensada do seu sistema. Para o que nos propomos, importa sobretudo evocar a perspectiva universalista de sua metafísica religiosa, tal como aparece em seu primeiro livro, De Concordantia Catholica (1433), no De Docta Ignorantia (1440) e no De Pace Fidei (1453). Nicolau de Cusa foi quem primeiro reconheceu a concordantia como um tema universal, presente tanto na vida da Igreja, no desenvolvimento da história e na estrutura do mundo quanto na natureza de Deus (Cf. Jaroslav Pelikan, Negative Theology and Positive Religion”, p. 68.). Para ele, a concordantia pode estabelecer-se não só entre o Papa e o Concilio, as Igrejas do Ocidente e do Oriente, como também entre o cristianismo e as religiões históricas. Ele chega a essa audaciosa conclusão com o auxílio da teologia negativa do Pseudo-Areopagita. E é sempre utilizando a via negativa que ele constrói sua obra-prima sobre a “douta ignorância”.
Nicolau de Cusa teve a intuição da docta ignorantia quando atravessava o Mediterrâneo (novembro de 1437), em viagem para Constantinopla. Por tratar-se de uma obra difícil de resumir, vamos assinalar apenas algumas de suas teses centrais. Lembra o Cusano que o conhecimento (que é relativo, complexo e finito) é incapaz de apreender a verdade (que é simples e infinita). Sendo toda ciência conjetural, o homem não pode conhecer a Deus (1,1-3). A verdade — o maximum absoluto — está além da razão, pois a razão é incapaz de resolver as contradições (I, 4). Cumpre, portanto, transcender a razão discursiva e a imaginação, e apreender o maximum através da intuição. Com efeito, o intelecto pode alçar-se para além das diferenças e diversidades através de uma simples intuição (I, 10). Mas, como o intelecto não pode exprimir-se numa linguagem racional, Nicolau recorre a símbolos, e antes de tudo às figuras geométricas (I, I, 12). Em Deus, o infinitamente grande (maximum) coincide com o infinitamente pequeno (minimum; I, 4), e a virtualidade coincide com o ato (Admite o Cusano que a teologia negativa é superior à teologia positiva, mas esclarece que elas coincidem numa teologia copulativa.). Deus não é nem uno, nem tri-uno, e sim a unidade que coincide com a trindade (I, 19). Em sua infinita simplicidade, Deus envolve (complicatio) todas as coisas, mas ao mesmo tempo está em todas as coisas (explicatio); em outros termos, a complicatio coincide com a explicatio (II, 3). Ao compreender o princípio da coincidentia oppositorum, nossa “ignorância” torna-se “douta”. A coincidentia oppositorum não deve, porém, ser interpretada como uma síntese obtida pela razão, pois ela não pode realizar-se no plano da finitude, mas, de maneira conjetural, no plano do infinito (Convém observar a diferença entre esta concepção — isto é, a coincidentia oppositorum efetuada no plano do infinito — e as fórmulas arcaicas e tradicionais relacionadas com a unificação real dos contrários — por exemplo, samsara e nirvana).
Nicolau de Cusa não tinha nenhuma dúvida de que a via negativa, que torna possível a coincidência dos contrários, abre um horizonte completamente distinto para a teologia e a filosofia cristãs, permitindo que se inicie um diálogo coerente e frutífero com as demais religiões. Infelizmente para a cristandade ocidental, suas intuições e descobertas não tiveram prosseguimento. O Cusano redigiu De Pace Fidei em 1453, ano em que os turcos acabavam de conquistar Constantinopla, pondo termo à existência do Império Bizantino. De fato, a queda da “segunda Roma” ilustra de maneira patética a incapacidade da Europa de manter, ou reintegrar, a unidade no plano religioso e político. A despeito dessa catástrofe, da qual tinha dolorosa consciência, em De Pace Fidei Nicolau retoma seus argumentos em favor da unidade fundamental das religiões. Não se embaraça diante do problema das “particularidades”: politeísmo, judaísmo, cristianismo, Islã. Seguindo a via negativa, ressalta o Cusano não apenas as descontinuidades, mas ainda as continuidades entre os rituais dos politeístas e o verdadeiro culto, porquanto os politeístas “adoram a divindade em todos os deuses” (De Pace Fidei, VI, 17, citado por Pelikan, “Negative Theology”, p. 72. “És Tu que dás a vida e o ser, Tu que és buscado nos diversos sistemas de culto e que és chamado de diversos nomes, porque, como Tu existes verdadeiramente, permaneces desconhecido de todos e inefável”, De Pace, VII, 21; Pelikan, ibid.). No que tange às diferenças entre o monoteísmo puro dos judeus e dos muçulmanos, e o monoteísmo trinitário dos cristãos, lembra Nicolau de Cusa que “na qualidade de Criador, Deus é tri-uno e uno, mas, enquanto infinidade, Ele não é nem triuno nem uno, nem nenhuma outra coisa que se pudesse dizer, pois os nomes atribuídos a Deus promanam das criaturas; em Si mesmo, Deus é inefável e está acima de tudo o que se pode nomear ou dizer” (De Pace Fidei, VII, 21; Pelikan, p. 74.). Além disso, os não-cristãos que crêem na imortalidade da alma pressupõem, sem saber, o Cristo que foi executado e que ressuscitou.
Esse livro deslumbrante e audacioso foi quase totalmente esquecido. Como lembra Pelikan, De Pace Fidei foi descoberto, no final do século XVIII, por Lessing. É significativo que a visão universalista de Nicolau de Cusa tenha inspirado o Nathan der Weise. Não menos significativo é o fato de que o De Pace Fidei ainda seja ignorado pelos diversos ecumenistas contemporâneos.
Nicolau de Cusa foi o último teólogo-filósofo importante da Igreja romana una e indivisa. Cinqüenta anos após sua morte, Martinho Lutero publicou, em 1517, as famosas 95 teses (cf. § 3); alguns anos mais tarde, a unidade da cristandade ocidental estava irremediavelmente perdida.