Eckhart Uno (Eckhart)

Mestre Eckhart — Termos e Noções
UM, UNO, UNITIVO; IGUAL, IGUALAR-SE, IGUALDADE, COMPARAÇÃO
Excertos do glossário do tradutor, Enio Paulo Giachini, da ótima versão portuguesa dos “Sermões Alemães” de Mestre Eckhart
SER UM, UNO E TRINO E A MULTIPLICIDADE DOS ENTES
Para o pensamento medieval, o único ente que é ser propriamente (Deus) é a onipresença. A saber, está presente em todos os entes, sem se imiscuir nem fundir-se com eles, guardando intacto o seu absoluto e infinito desprendimento, portanto sem jamais diminuir na sua identidade, mas ao mesmo tempo sem liquidar a realidade dos entes, sem reduzi-los à pura ilusão da entificação mental, a ens rationis. Nessa questão encontramos nos sermões alemães de Eckhart um duplo aspecto. O relacionamento de Deus (Criador) para com suas criaturas e a referência do Um (a liberdade desprendida da deidade na dinâmica Una e trina) ao conjunto Deus Criador e suas criaturas.

Essa questão é usualmente abordada, distinguindo-se em Deus um duplo aspecto: Deus ad intra (referido para dentro) ou quoad se (enquanto a si ele mesmo) e Deus ad extra (referido para fora) ou Deus quoad nos (enquanto a nós), Deus sob o aspecto referido a ele mesmo, isto é, enquanto a vida interior una e trina, e Deus sob o aspecto de relacionamento para conosco, criaturas, isto é, Deus para fora. Dentro dessa esquematização formal, a tentação é de dizer que a deidade em Eckhart se refere ao primeiro aspecto, ao passo que Deus diz respeito ao segundo aspecto. Nesse sentido, a unidade na dinâmica trina da geração ou processão interpessoal da vida interna (quoad se, ad intra) de Deus possui a sua unidade própria que não coincide tout court com a unidade do Deus quoad nos, na sua ação ad extra na criação e manutenção do universo. Portanto, em Eckhart, há algo assinalado por ele com o termo Um, para além e dentro, como que se adentrando a própria dinâmica da processão, não propriamente como uma substância ou natureza una, “responsável” pela ação ad extra como Criador, como causador da criação, mas “algo” como uma presença que vem à fala no movimento de inter-processão trina das três pessoas, como que se expandindo na dinâmica centrifugai de doação total e ao mesmo tempo como que se recolhendo, na dinâmica centripetal, num retraimento abissal de contínuo desprendimento de si, como que a desaparecer na modéstia e na humildade do seu ocultamento. Portanto, Um-Nada onipresente, envolvendo tudo e cada coisa com cuidado infinito, tão cuidadoso a ponto de não marcar a presença com importância, mas como que a se manter na discrição de um pudor, cheio de benevolência e disponibilidade. Não poderia ser que a divisão Deus quoad se e Deus quoad nos, no fundo, criasse essa perspectiva, pela preocupação de explicar a natureza, isto é, a substância divina, Deus como único ser (substância-algo), presente em cada ente criado, sem que o ser dos entes criados seja confundido com o ser de Deus, de cuja con-fusão resultaria o panteísmo? E que esta pré-ocupação está ao mesmo tempo imbricada com o problema do conhecimento real de Deus, que pergunta como o infinito, inacessível ao nosso limitado intelecto humano, finito, pode ser realmente conhecido por nós? Não seria possível experimentar uma hipótese, na qual se tentasse entender a diferença eckhartiana entre Deus e deidade não como uma insistência na inacessibilidade do desprendimento, como se desprendimento conotasse o afastamento de Deus do ente criado, mas como afirmação livre, desimpedida, na qual ser não é outra coisa do que Gottesminne na plenitude da doação de si, na liberdade absoluta da sua identidade? Da sua identidade que inunda como o abismo do mar, na sua imensidão, profundidade e criatividade, todos os entes possíveis e atuais, desde os mais sublimes até os mais insignificantes, nada excluindo? Da sua identidade que é cada vez como presença única, nova, no frescor nascivo de ser, recolhido, cada vez todo inteiro no singular retraimento e pudor, digamos, um nada de importância? Da sua identidade que se faz junto aos entes, é ser-com os entes, silenciosamente, absolutamente, é humilde e modesto, sempre ali disposto na doação? Essa mesmidade é Um.


Traduções em francês
Gwendoline Jarczyk e Pierre-Jean Labarrière

  • SERMÃO XXI