Eckhart União Unidade (Eckhart)

Mestre Eckhart — TERMOS E NOÇÕES
Excertos de Giuseppe Faggin — Meister Eckhart e a mística medieval alemã
União e Unidade
Depois destas determinações é inútil perguntar-se se Meister Eckhart prefere a vida ativa à contemplativa, ou se prefere Maria à Marta, Raquel à Lia. A ação está nas raízes do nosso ser; mais ainda, nosso ser espiritual é obra incessante e se sustenta unicamente como tal. Deus é atividade criadora inesgotável que age sem vincular-se com suas criaturas; por isto quem vive submetendo sua vontade a Deus estabelece seu ser no infinito poder criadorde Deus. Se a ação exterior atrapalha a interiordevemos atar-nos a esta última. No entanto, seria melhor a coexistência de ambas para colaborar realmente com Deus. A união com Deus não se concebe, portanto, como meta final que detém e imobiliza numa quietude inefável o ato da alma que deve renovar-se a cada instante para não morrer. A alma revela sua íntima unidade com Deus não quando cristaliza-se numa visão estática, esquecendo-se de si mesma e de todas as coisas no objeto pensado e contemplado, senão quando, renegando-se a si mesma no ato da entrega, se dá a si mesma a prova de Deus, realizando-o em sua ação. Se pensar implica sempre na irredutível dualidade de sujeito e objeto e se mantém .portanto, afastado da unidade absoluta, o ato da boa vontade é, ao invés, uma unidade viva e operante. Neste ato a alma está unida a Deus muito mais estreitamente que ao corpo: a união é mais íntima — a imagem é de Bernardo — que quando se verte uma gota de água em um tonel de vinho: água e vinho e, no entanto,ambos convertidos em uma só substância, de modo que ninguém poderia perceber sua diferença. A unidade, por isso, não se deve buscar no final do processo moral, em um determinado momento de exceção, senão no próprio processo, como alma e íntimo significado da atividade em si. “Se estivéssemos em estado de êxtase como o de São Paulo e soubéssemos que um doente necessitasse de um pequeno serviço, eu consideraria muito mais importante deixar o amor e o êxtase para servir a Deus com um amor muito maior… Por amor se pode renunciar a todas as delícias do amor. Como consequência,a unidade — como a liberdade do espírito — existe tão somente enquanto é unificação no ato e a unificação não é possível se a alma não alcançou a unidade com Deus, quer dizer, com sua natureza profunda, fora do encanto do exterior. Unidade quer dizer liberdade somente no perene processo de libertação. É natural que a alma, assim unificada e livre,apesar do inevitável conflito que surge das paixões do mundo, olhe para as coisas com divina serenidade e transfigure — sem eliminá-lo — o múltiplo. Reconduz as coisas a si mesma; em cada uma delas, intui o Uno e o Eterno, e nelas cumpre seu ato moral. Reconduzido à alma, o mundo se libera do tempo e do espaço, unifica-se nela, e nela adquire gratuitamente seu valor. “Um indivíduo despojado do seu eu estaria de tal maneira rodeado por Deus que todas as coisas criadas não o poderiam tocar sem tocar antes em Deus; o que tivesse que chegar até ele deveria chegar através de Deus, de quem receberia seu sabor transformado em divino”. Assim como no Cântico das Criaturas de São Francisco, a experiência mística transfigura as coisas e se torna fonte de inexprimível poesia, também em Meister Eckhart, como em Kant, a condição transcendental da contemplação estética e a libertação interior do espírito de toda a necessidade e interesse prático. O primitivo rigor ético se ilumina agora inesperadamente com a luz da poesia e a natureza se transforma, como para Cristo, em símbolo vivo do Bem para quem saiba com a alma pura, olhá-la com os mesmos olhos de Deus.

É esta a oculta estrutura metafísica da ensinança moral de Meister Eckhart contida nos Reden, Mas neste ponto o pensamento, sempre em busca de uma justificação racional de suas afirmações e de seus atos de vida, se propõe novos e mais prementes problemas: esse Deus que realizamos em nosso ato moral é então imanente em nós e se identifica com a nossa obra? É Deus o ser, ou é uma atividade superior ao ser, que vive tão somente no ato humano? E se a interioridade da alma, no ato em que realiza o querer eterno de Deus, é o próprio Deus, que é nossa condição de criatura finita que continuamente nos acompanha e a qual temos que renunciar heroicamente? Uma vez mais, Deus e a alma. Em sua fundamental experiência ético-religiosa Eckhart não viveu os problemas, senão a luminosa certeza da Vida divina onde não existem as teias da lógica. Mas também o prodígio do ato espiritual — como as flores que se abrem ao sol — se cumpre no pensamento e o pensamento se volta para ele para compreendê-lo e quase dominá-lo. Com efeito, o místico, alma amante como Deus, não se encerra em um estéril isolamento: ele se dá amorosamente às outras almas, escreve, ensina e abre caminho, no mundo, entre ódios, amores e baixezas, para revelar aos demais o milagre do Espírito.

Os Reden são a primeira expressão do Inexpressável, o primeiro passo de uma tarefa gigantesca. Poderá o pensamento traduzir com proporção lógica, na problemática escolástica que é o âmbito de fracos esforços, o que está além das abstrações lógicas e verbais? Ou deverá limitar-se a sugerir com audácia de símbolos e de imagens, violando os limites da especulação tradicional o que seu grande espírito havia vivido e intuído? Depois dos Reden sua tônica mística se revela com fervor igualmente genuíno e com “livre espírito” somente nos sermões alemães; mas também nas obras especificamente filosóficas e teológicas — onde parece que a originária espontaneidade jaz oprimida sob o cúmulo da erudição e das discussões formais — sua alma se encontra presente com suas exigências profundas. É necessário afirmar também no caso de Eckhart que um determinado sistema intelectualista não dirige o querer e cria um ideal de vida, mas que uma originária atitude volitiva e espiritual orienta o pensamento até uma meta que pretende ser racionalmente universal, mas que é, essencialmente, profunda e incomunicável Vida.