Eckhart Um

Mestre Eckhart — UNO
Excertos do glossário do tradutor, Enio Paulo Giachini, da ótima versão portuguesa dos “Sermões Alemães” de Mestre Eckhart; vide Eckhart Uno

UM, UNO, UNITIVO; IGUAL, IGUALAR-SE, IGUALDADE, COMPARAÇÃO1. Aqui, numa tal igualdade, uma coisa jamais se torna outra, jamais é a mesma; cada qual guarda a sua individualidade numérica como este um e aquele um. Nesse sentido, nessa acepção usual da igualdade de duas coisas ocorrentes como entes físicos, se representamos a Deus como uma entidade e as criaturas como outras entidades, jamais se dá a fusão de mesmidade “Deus e criaturas”, de sorte que por mais que se queira fundir esses diferentes entes, disso nunca resultaria o panteísmo. Se aqui, nesse modo de entender a igualdade, observarmos bem o sentido do ser operante, haveremos de perceber que se refere aos entes físicos materiais e que diz respeito ao seu aspecto quantitativo. O aspecto do todo muda completamente quando estamos diante de uma sentença como: “£u e o Pai somos um”, “todos unidos num único coração”; “Deus uno e trino”. Aqui Eu, Pai, todos, coração, Deus não são entes de coisalidade físico-quantitativa. São pessoas, cuja coisalidade (leia-se causalidade; causa é o âmago, o coração do que me toca, me atinge) é a realidade denominada liberdade. Aqui nesta realidade, toda e qualquer realização requer mais, muito mais e qualitativamente mais do que a equiparação igualitária de “igualação” em aspectos ou em atributos ou em proporcionalidade. União, ser um, ser uno, portanto ser igual significa aqui ser total, inteiramente, absolutamente outro num “modo de ser todo próprio”, de intensidade e comprometimento radical que, na falta de recurso de linguagem, denominamos de identificação. Portanto, o igual no sentido usual, jamais é o mesmo, igualdade, jamais mesmidade, identidade, igualar-se, jamais identificar-se.

No entanto, se dissemos: “A criatura humana é igual a Deus”, nesse uso corrente do termo igual, ouvimos de imediato uma identificação total com Deus, de tal modo que aqui não mais existem dois entes, mas um único ente, dando-se uma fusão de dois num só ente, como se ente criatura e ente Deus fossem dois pedaços de ferro que se fundem num. Esta é a representação que opera no panteísmo. Nesse caso e em casos similares, o medo do panteísmo faz com que evitemos os termos igual e igualdade, para substituí-los por mesmo, e mesmidade, ou identidade. Com isso guardamos a diferença entre o ente Deus e o ente criatura, e conservamos o relacionamento de união entre dois entes. E, no entanto, não percebemos que aqui igual e igualdade correspondem a uma relação entre um ente e outro, cujo sentido do ser se refere a uma comparação entre uma coisa material física e outra coisa também material física, vistas a partir de fora por um observador que as enfoca sob um determinado aspecto comum de dois. E esse aspecto comum é sempre de algum modo quantitativo. Nesse nível da realização da realidade, não há união, não há propriamente relacionamento, sim, nem sequer relação entre uma “coisa” e “outra”, pois o que chamamos aqui de relação é produto da comparação do sujeito observador que se relaciona com objetos, no interesse de medição sob uma determinada medida pré-moldada. Relacionar-se, unir-se, identificar-se, o contato, o toque, tornar-se outro, somente é possível a partir e dentro do sentido do ser da dimensão pessoa. O problema do uso dos termos igual, igualdade, igualar-se, que pode insinuar o panteísmo, não está no fato de eles fundirem Deus e criatura numa só coisa e confundirem a diferença de Deus e a da criatura, mas sim de operar no sentido do ser que coloca tanto a Deus como a criatura como dois objetos entes, cujo modo de ser é o de coisa físico-material, de tal modo que aqui o sentido do ser operante, na qualificação e na intensidade da realização da realidade, está abaixo do exigido pela realidade como a que é tratada nos sermões e nos tratados de Eckhart.

Eckhart, em tudo que fala, diz a partir e dentro do sentido do ser próprio da dimensão pessoa, pois o seu inter-esse é dizer a dinâmica da presença do Deus no seu ser e na sua atuação na humanidade e através dela em todo o universo, como é proposta pela cristidade no assim chamado mistério da encarnação. Neste não se trata de equiparação, de divinização, mas sim de geração, de filiação, na qual o homem é realmente filho de Deus no Filho Unigênito do Pai, na identificação e união tão profunda, intensa e íntima que igualação a modo panteísta sabe à palha, insípida, neutra e coisal, diante da paixão de união e de identificação que se dá numa tal realidade do que, na falta de outra palavra, chamamos de encontro. Como Eckhart fala a partir e dentro da dimensão pessoa e do encontro, usa as palavras igual, igualar-se, igualdade, para indicar o ser um, o ser uno, na união identificadora do encontro, face a face, mano a mano, tu a tu, pois se se permanecer limpidamente na lógica dessa dimensão, o fantasma do panteísmo se esvai como ilusão de uma inadequada colocação do sentido do ser, alheia e deficiente para a realização da realidade Deus e ser-humano. Portanto, o sentido do ser da unidade, do um, do uno e do igual, do igualar-se e da igualdade deve ser rastreado, interrogando-se os entes, constituídos a partir e dentro da dimensão pessoa e do encontro, no seu ser, evitando-se ter como o interrogado, o ente, cujo sentido do ser é a coisalidade físico-material, alheia à vida e à liberdade. Nesse sentido, quando nos sermões se fala ora de igualidade ora de ser Um, se entendo igualdade, igual como semelhança de equiparação comparativa, então igualdade não é ser-Um. Nesse caso é possível dizer que unidade, união, identificação exclui a igualdade. É de interesse precisar que a exclusão aqui se dá não por medo de na igualdade misturar panteisticamente Deus e criatura, mas porque uma tal igualdade é de uma realidade e intensidade inadequada, indigna, sim, “coisal” demais para satisfazer e honrar o grande desejo do Pai de ser-um com a alma e a alma um com o Pai, no Um abissal silenciado como em doação absoluta da deidade-Minne. Se, porém, “intuirmos” a igualdade, seja ela em que nível for, mesmo no nível “deficiente” da igualdade coisal, a partir do desprendimento da doação absoluta da deidade-Minne como Um, a unidade não exclui, mas inclui a igualdade.


  1. DAS) EINS, (DAS) EINE, (DAS) EINIGE; GLEICH, GLEICHEN, GLEICHHEIT, GLEICHNIS) (Das Ein(s): o um; das Eine: o uno; das Einige: o unitivo; gleich: igual, gleichen: igualar, die Gleichheit: igualdade; das Gleichnis: a equação ou a comparação)

    Nos sermões alemães de Eckhart, os termos um, uno, unitivo, igual, igualar-se, igualdade são usados frequentemente, quando se fala da geração e processão e da filiação, dentro do mistério da Santíssima Trindade, portanto, do “relacionamento” “entre” as pessoas intra-trinitárias, Pai, Filho e Espírito Santo; mas também quando se trata da união da alma com Deus. Em referência a esses termos, também aqui, devemos observar o que dissemos da Abgeschiedenheit, a saber, que eles devem ser entendidos neles mesmos, não a partir e dentro da acepção do que usualmente entendemos por um, uno, igual, mas a partir e dentro do que se sucede na dinâmica da geração e processão das pessoas da Santíssima Trindade e, então, a partir dali compreender o que usualmente entendemos por um, uno e igual.

    Usualmente um indica o número 1 ou o demonstrativo indefinido. Uno diz o todo do conjunto de elementos, unificados sob um denominador comum; igual dizemos de duas ou mais coisas que coincidem, ora sob um determinado ora sob todos os aspectos, exceto no seu existir ocorrente. Igualdade pode ser de atribuição de um determinado aspecto (por exemplo, este lápis é igualmente azul como aquele lápis) ou de proporção (2 + 2 = 4; 1/2 = 2/4; (2 + 3) = (10 — 5