Eckhart Sermão 8 Ser

Mestre EckhartSERMÃO 8
Excertos do glossário do tradutor, da ótima versão portuguesa de Enio Paulo Giachini, dos Sermões Alemães

CONHECER, VIVER, SER (INTELLIGERE, VIVERE, ESSE)
Nos sermões alemães, Eckhart fala do relacionamento entre os modos de ser, denominados, por exemplo, no sermão 8, de conhecer (intelligere), viver (vivere) e ser (esse). Nessa relação é necessário distinguir ardo in abstracto (ordenação em abstrato) e ordo in concreto (ordenação em concreto).

a) Ordo in abstrato

Conhecer, viver e ser, por serem considerados abstratos, estão no infinitivo. O infinitivo é modo do verbo no qual se abstrai de suas diferenças modais, para deixar o verbo na sua generalização estática neutra. Verbo é dinâmica, ação. Mas no modo infinitivo a dinâmica da ação é achatada e fixada sob uma classificação generalizante, neutra como modos de ser. Aqui o ser dos modos já está fixo num sentido do ser bem determinado, chamado algo como “acidente”, concomitante de uma “substância”, de uma “coisa” subsistente em si. Assim temos: 1. a substância dos entes simplesmente ocorrentes ou não-vivos (coisas físico-materiais, por exemplo, pedra, metal etc. = espécie ínfima substância que é também gênero para a espécie superior próxima vivente) e o seu modo = ser (esse); 2. a substância dos entes vivos (coisas vegetais, por exemplo, plantas = espécie vivente e ao mesmo tempo gênero para espécie superior próximo animal) e o seu modo = viver (vivere). Aqui se inclui de algum modo a substância dos entes sensíveis (coisas animais, por exemplo, gatos, pássaros = espécie animal e ao mesmo tempo gênero para a espécie superior próxima homem) e o seu modo = viver; 3. a substância dos entes racionais (coisas humanas, por exemplo, homens, mulheres, crianças etc. = espécie suprema homem) e o seu modo = conhecer. Nas três modalidades de “ser” substância: substância 1. coisal; substância 2. viva; substância 3. racional, o termo substância parece ser “analógico”, mas se bem examinado é “unívoco”, pois sem as diferenças específicas (adjetivos: não-viva; vivente, sensível, racional) não faz surgir diferença, e se a diferença ali está como coisa material, vegetal, animal e racional, subsume a diferença já de antemão como modalidades específicas referidas e acrescentadas à substância, entendida na realidade, tendo como o sentido do ser o esse (e não vivere, nem intelligere). Com outras palavras, por viver e conhecer estarem já focalizados a partir de uma prévia pré-compreensão do “ser” (sentido do ser) como a do ser-simplesmente-ocorrente como “coisa-físico-material”, os verbos conhecer e viver aparecem na neutralidade do infinitivo como modos, acidentes, atos, certamente diferentes, mas da mesma compreensão da substância. Colocados assim, ser, viver e conhecer aparecem na sua diferença ôntica, mas não na sua diferença ontológica. As diferenças ônticas não são con-cretas, mas abstratas, enquanto são produtos de um enfoque generalizante e neutralizante. Aqui o ontológico é identificado com a compreensão geral, abstrata do ser lógico na sua formalidade neutra. Dentro dessa perspectiva o ser, o esse é primeiro, o básico, comum tanto ao viver como ao conhecer, pois primeiro é necessário ser, para ser vivo e racional.

b) Ordo in concreto

Quando, porém, ser, viver e conhecer (esse, vivere, intelligere) vêm ao nosso encontro como verbo na sua dinâmica própria total, no ser da sua dinâmica cada vez diferente, não como modalidades específicas de um gênero, ou individuais de uma espécie, comum e geral, mas como sendo todo ele, ele mesmo, portanto no seu “ser \ na sua diferença ontológica; então essa dinâmica diferencial da sua identidade aparece na formulação: em conhecendo (intelligens), em vivendo (vivens) e em sendo (ens), e indica a totalidade na sua concreção, portanto é in concreto. Por isso diz Eckhart: in abstrato, portanto, na ordenação dos modos de ser como esse, vivere e intelligere, esse é perfectius intra tria; vivere nobilius intelligere1. Ao passo que in concreto no grau supremo está o intelligens, seguindo-se o vivens e na localização a mais baixa está o ens. Repetindo o que já foi mencionado antes, como o fundo dessa dupla ordenação in abstracto e in concreto, temos a paisagem da escalação dos entes em esfera ou região dos entes não-vivos (substância como espécie ínfima e gênero próximo ao vivente = mundo fisico-material) = esse; região dos entes vivos ou viventes (vivente como espécie e gênero próximo para o animal = mundo vegetal ) = vivere-, “região” dos entes racionais como espécie suprema homem, animal racional). Abarcando as substâncias, da espécie ínfima substância-coisa até a espécie suprema substância homem, temos uma grande região do universo, habitada pelos entes chamados substâncias compostas. No homem se dá a passagem da dimensão das esferas dos entes-substância compostos para a dimensão das substâncias simples ou espirituais. E enquanto pertencente à dimensão das substâncias simples, embora pertença também à dimensão das substâncias compostas, o homem, o animal ou o ânimo racional no seu vigor essencial vem à presença como ratio, intellectus, spiritus, mens (intensidades da ratio como níveis de pureza da essencialidade = mundo espiritual) = intelligere. E, nessa dimensão, a escalação da intensidade de “ser”, aqui qualificada como “espiritual”, se gradua em diferentes coros dos anjos até culminar na presença do ipsum esse, o ens a se2, Deus. Mas o termo esse ou ser aqui nessa dimensão das substâncias simples não é o esse do sentido do ser da substância ínfima da dimensão das substâncias compostas, mas a plenitude da dinâmica do “ser” designada pelo termo conhecer, intelligere. Resumindo o que dissemos até agora: se tomo o sentido do ser-coisa como medida do ser, e o designo pelo termo esse, então esse vem primeiro, sendo mais “excelente” na sua consistência físico-material do que vivere e intelligere. Se porém entendermos intelligere, vivere e esse in concreto como concreção do sentido do ser, não mais tendo como núcleo de referência a compreensão coisificada estática do esse, mas sim como a vigência essencial da presença concrescida, como a potencialização da intensidade diferenciada em níveis de dinâmica do ser como em sendo, então o em sendo o mais intenso, mais vasto, mais profundo e originário é a dimensão concreta intelligens, a saber, a dimensão que não é mais nem gênero, nem espécie, nem indivíduo, mas sim, o sentido do ser vindo à presença como a dinâmica da liberdade que recebe então o nome de espírito ou dimensão espiritual = mundo humano e sua transcendência = mundo espiritual em direção ao mundo divino. Esse in concreto intelligens, vivens, ens é o que propriamente chamaríamos de ontológico, mas não mais como o conceito geral, formalmente o mais comum, abstraído das especificações e individuações diferenciais dentro do horizonte do sentido do ser dos entes coisas, mas sim como dimensões de totalidade da presença do sentido do ser; como intensidades da concentração na totalidade no uno, universal, a totalidade conversa ao uno: simplex.


NOTAS
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  1. O ser é mais perfeito entre os três; viver, mais nobre do que “compreender” 

  2. O ser ele mesmo, o ser a partir de si.