MESTRE ECKHART — TERMOS E NOÇÕES
SER
Gwendoline Jarczyk e Pierre-Jean Labarrière indicam este tema como proeminente nos sermões: II; IV; VI; VIII; XIX; XXV
Excertos de Giuseppe Faggin — MEISTER ECKHART E A MÍSTICA MEDIEVAL ALEMÃ
A primeira obra latina que por sua importância pode colocar-se ao lado dos Reden e testemunha uma decidida posição especulativa na questão parisiense é Utrum in deo sit idem esse et intelligere (1302-03) na qual Eckhart se atreve a enfrentar-se com a doutrina do Aquinate quanto ao máximo problema do pensamento humano: o problema da natureza do Absoluto. Deus é necessariamente concebido — segundo a fundamental intuição plotiniana que jamais foi desmentida — como o Ser primeiro e simples, quer dizer, como unidade absoluta. Eckhart, para demonstrar que em Deus o esse e o intelligere são uma só coisa idêntica, recorre à doutrina tomista e não à neoplatônica: Deus não é concebido como a abismal unidade que transcende o ser assim como o pensamento, mas como Actus inmanens de uma suprema Inteligência. Deste modo o pensamento de Eckhart está por ora na linha ideal de Averróis, de Avicena, de Tomás de Aquino e do desconhecido autor do Liber de Intelligentiis.
Tudo o que é no Primeiro e no Uno é primeiro e uno; em Deus não há causalidades e, por conseguinte, nele o ser é idêntico à essência. Se em Deus o esse e o intelligere fossem duas coisas distintas, haveria nele uma potência passiva porque a inteligência estaria em função do ser e ele teria um fim diferente de si mesmo e do que ele é; mas o Primeiro é infinito e o Infinito não tem fins. O intelligere é em relação à espécie, o que o esse é em relação à essência; pois bem, a essência divina ocupa o lugar da espécie, mas posto que em Deus o ser é idêntico à essência, nele, como para Tomás, o intelecto e o que é pensado, a espécie inteligível e o próprio intelligere, são uma só coisa idêntica. E visto que o ser de Deus é ótimo e perfeitíssimo, ato primeiro e perfeição de todas as coisas, sem o qual tudo é nada, Deus por seu mesmo ser produz todas as coisas, pois com seu próprio ser age e conhece. Assim, o ser se resolve no intelligere e o intelligere se identifica com o operar. Deus não é, portanto, inteligência enquanto ser, senão ser enquanto inteligência.
Neste ponto as argumentações eckhartianas se desviam da linha tomista na direção de uma posição neoplatônica. Desfeito e anulado o esse no intelligere, Eckhart, recorrendo ao De Causis, examina novamente o ser e o subordina ao ato do intelecto. O ser “é a primeira das coisas criadas” e razão da criabilidade. Não é verdade, como afirma Tomás de Aquino, que o intelligere ocupe secundum se o segundo lugar, depois do ser e o viver e seja primeiro unicamente em relação ao participante: o intelligere ocupa o primeiro grau na perfeição e, por conseguinte, é superior ao ser, visto que in principio erat Verbum. E além disto, se, como diz Aristóteles, na ciência matemática não há fim nem bem, não há, por conseguinte, tampouco ser, visto que o ser e bem são uma mesma coisa. O ente na alma, enquanto tal, não tem então a razão do ente, senão que é similar à imagem que, por ser imagem e não ente real, se afasta do conhecimento da coisa, da qual é somente imagem.
Estabelecida a absoluta prioridade da Inteligência (ou Espírito) em relação ao Ser — com uma insistência que nos lembra a Fichte — e negada a razão de ser ao ente enquanto pensado, Eckhart multiplica seus argumentos para expulsar o esse do intelligere, oscilando entre a posição tomista, a qual não aceita desde a sua delineação fundamental, e a teoria plotiniana, a qual roça sem aceitá-la integralmente. Deus não é o ente senão a causa do ente: com efeito, a ciência de Deus, que é idêntica ao seu agir, é a causa das coisas, ao contrário da ciência humana que é causada pelas coisas e depende do ser. Pois bem, somente a causa análoga ou essencial merece para Eckhart o nome de causa. Mas Deus, por ser a verdadeira causa do ser, deve estar além deste, “porque nada está formalmente na causa e no causado se a causa é a verdadeira causa”. Então, “o ser formalmente não está em Deus”. O argumento é plotiniano e preludia a coincidentia oppositorum que se encontra depois em Nicolas de Cusa. Deus, para poder ser a fonte de toda a realidade, não deve ser formaliter nenhuma das realidades de que é causa criadora. Mas em Plotino o Uno é tanto fonte do Nous como do Ser e, por conseguinte, está além do Nous; por outro lado o Ser é idêntico ao Nous e não sua criação. Portanto, o Uno plotiniano não pode chamar-se nem Ser nem Inteligência, porque é fonte de um e da outra; então é o Inefável. Se bem que Eckhart se valha de argumentações neoplatônicas para apagar assim o ser, por outro lado se mantém fiel à metafísica aristotélico-tomista da Inteligência e não penetra na neblina da teologia negativa. Mas de qualquer modo o caminho já está traçado. Agora também se afasta inequivocamente do panteísmo: porque se “nada do que é em Deus tem razão de ente, senão que tem razão de intelecto e do próprio intelligere”, se “no próprio intelligere todas as coisas estão contidas em potência como na causa suprema de todas as coisas”. Deus não e o ser das coisas, mas sua causa primeira. As coisas — dirá mais tarde no comentário In Sapientiam — não têm um certo ser próprio formal “senão que para ser, se formam e se produzem por uma causa exterior”. E com efeito, o ser é sempre “algo determinado” e, portanto, não se o pode pensar senão como multiplicidade e diferenciação. Deus, ao contrário, é unidade absoluta e como tal é “algo mais alto que o ente”. E assim como a visão para poder ver todas as cores deve carecer de cor e o intelecto deve carecer de formas para poder conhecê-las a todas, também Deus deve carecer do ser e chamar-se melhor dito, “pureza do ser” para ser causa de todo o ser. Concluindo: “Deus, raiz viva e causa de todas as coisas, possui antecipadamente, mais ampla e abundantemente, todas as coisas em pureza, plenitude e perfeição”.
Assim, a frase bíblica “Eu sou quem sou” é agora interpretada de modo muito estranho e diferente do tradicional: não significa para Eckhart a absoluta prioridade metafísica do Ser divino, senão que é uma declaração de teologia negativa: assim como de noite, um indivíduo, interrogado sobre sua identidade pessoal, para não revelar-se responde “eu sou quem sou” também Deus oculta sua natureza.
SEGUE: SER É DEUS; SER ABSOLUTO