Eckhart Nascimento

NASCIMENTO (GEBURT)
VIDE

Mestre Eckhart
Excertos do glossário do tradutor, Enio Paulo Giachini, da ótima versão portuguesa dos “Sermões Alemães” de Mestre Eckhart
NASCIMENTO (GEBURT)
(Geburt, nascimento, geração, filiação)

Nascimento, geração é diferente da causação, da efetivação, da produção e da criação de uma obra. Em Eckhart, nascer, gerar se refere primeira e primariamente à geração e processão dentro da Santíssima Trindade, ao surgimento do Filho, do Pai no Espírito Santo e à união que se dá “entre Deus e alma” enquanto nascimento de Deus na alma e nascimento da alma em Deus, a modo de vigor e ternura da intimidade unitiva do Pai na geração e no nascimento do Filho no Espírito Santo. O ponto de contato da alma com Deus é o Filho, no qual, pelo qual e através do qual o homem é filho no Filho. E no homem, pelo homem e através do homem todos os entes criados e criáveis, portanto o universo inteiro, atual e possível, se tornam também “filhos” de Deus.

A dinâmica da geração e processão, Pai e Filho no Espírito Santo, não pode ser pensada como relacionamento de três substâncias, primeiro existentes em si, para então se relacionarem entre si mutuamente. O que há ali se dá de modo nascivo e como fonte é a ação do gerar e ser gerado, e tanto Pai como Filho como Espírito Santo são concreções ex-plicantes de como é essa ação. Essa ação é abgeschieden, isto é, desprendida de toda e qualquer mediação que não seja o mediar-se dela mesma, nela mesma, a partir e dentro dela mesma. É pois neste sentido, solto, à vontade, livre, na pura dinâmica do seu ser, que devemos cada vez de novo ler as mútuas implicações do Pai no Filho e do Filho no Pai, no Espírito Santo, recebendo, e no receber, dando a si no, pelo e através do outro como outro no outro, como o mesmo no outro, como que num movimento centripetal e centrifugal simultâneo de uma espiral a partir e para dentro da profundidade abissal, em cujo ponto de fuga, qual no olho do furacão, vislumbramos por instante um abismo de unidade, de unicidade único que recebe o nome de Um. A condução para dentro desse movimento, na dinâmica do turbilhão trino de ser “om e ser em mutuamente na força unitiva e gerativa do Um, não é especulação, um saber sobre uma realidade em si, mas sim a própria intensidade e vitalidade de participação do ser com e ser em, do âmago de nós mesmos denominado alma, na realização da realidade explicitada na cristidade como a vida íntima de amor gerativa, chamada Pai e Filho, no amor unitivo chamado Espírito Santo, dentro do Mistério do Deus uno e trino. Esse movimento é como percussão de origem que repercute como cadências em diferentes níveis da intensidade de ser, criando diferentes ordenações da totalidade dos entes do uni-verso, em suas dimensões, mais ou menos na seguinte escalação da intensidade do ser: dimensão Deus, dimensão espírito ou anjo (em nove coros), dimensão homem, animal, vegetal e dimensão substância material inanimada. Em cada uma dessas dimensões, de modos diferenciados, cada vez conforme a intensidade de ser das dimensões, se constituem milhares de entidades em variegadas modulações. Todas essas entidades são como repetições de cintilação em diferentes níveis e intensidades do esplendor que salta de e em Deus, como deslanche e eclosão do ser, como que vindo do abismo do seu interior, o mais íntimo e oculto, naquela dinâmica de geração e processão trinitária, que por sua vez se perde para dentro da profundidade unitiva do Um, como foi acima insinuado. Isto significa que a percussão da assim chamada vida íntima do amor trini-tário na força da geração é repetida em milhões e milhões de variações, em cadências e toadas de ecos e repercussões, formando as entidades do universo na sua totalidade como criação. É de grande importância para o pensamento medieval observar que o homem, ou melhor, a alma como o núcleo do ser humano, no seu fundo o mais profundo, é o lugar do toque da percussão da vida íntima do amor trinitário, onde se dá o nascimento de Deus na alma e o nascimento da alma em Deus, gerada como filho no Filho Unigênito do Pai, Deus, que se encarna como Jesus Cristo, Deus feito homem. E através do homem feito Deus, e de todos os homens nele nascidos como filhos de Deus, todos os entes não humanos participam dessa filiação, de tal maneira que a deidade, o próprio de Deus na sua absoluta Abgeschiedenheit, na mais pura soltura da sua liberdade, se torna como que também o fundo desprendido (abgeschieden), de todos os entes no seu núcleo, na jovialidade da liberdade dos filhos de Deus.

Essa onipresença da deidade como Abgeschiedenheit em todos os momentos da cadência, da escalação, da cascata das entificações constitutivas dos entes do universo, as hierarquias dos entes, as diferenças de superioridade e inferioridade, os degraus e as intensidades do ser, não são valorações diferenciais de dominação e poder, mas sim riquezas de prodigalidade e generosidade da doação e recepção da iniciada e sempre novamente retomada de-finição do encontro como concreção da filiação divina. O Um como o mistério do retraimento da Abgeschiedenheit, a deidade, assim se torna como a condição da possibilidade de todas as coisas, sem jamais aparecer, sem jamais se mostrar, sempre oculto, retraído na humildade e pudor da sua doação incondicional e ilimitada. Esse ser, ou melhor, sentido do ser, é o ontologicum do pensamento de fundo dos sermões de Eckhart.

Em referência ao nascimento do Filho, do Pai e nascimento do filho (nós) no Filho, isto é, nascimento do Filho na alma e da alma no Filho, Eckhart usa a expressão sun nâch der ungebornheit (Sohn gemäss der Ungeborenheit = Filho segundo não-nascimento). Ungeborenheit se refere certamente à diferença existente entre o ser incriado e ser incriável. Ser incriado se refere a Deus enquanto ainda considerado a partir e dentro do sentido do ser da criação, para não dizer causação (embora já subsumido pelo sentido do ser da filiação, mas dele esquecido); portanto se refere a deus, e não à deidade. O ser incriável se refere à deidade, ao Um.

Mas aqui há uma certa ambiguidade: A filiação divina, o ser em Deus, parece não somente significar que é Filho unigênito de Deus na participação da filiação divina, entendendo a Deus como deus, portanto filiação enquanto referida à participação na criação, no ser continuamente engendrado eviternamente de deus criador, mas também ser igual ao Filho Unigênito do Pai no mistério da Trindade, participação essa possibilitada pela encarnação. Somos filho no Filho. Mas há ainda um ser “igual” a Deus, digamos mais radicalmente, inteiramente desprendido, livre e solto, no sentido de, sendo filho no Filho, ser igual a Ele na recepção de ser Filho como quando Deus ainda não era, isto é, repousar na deidade, no Um, no abismo do Um unitivo, antes de tudo, como quando ainda não éramos, nem criaturas, nem filhos, nem filhos no Filho, mas Filho Unigênito no Pai. Como tudo isso, toda essa igualdade é a atuação da própria deidade, e atuação na deidade é ser, o verbo ser sempre adquire duplo sentido de ser e não ser. Daí a resposta de Eckhart: É filho e não é filho.


Traduções em francês
Gwendoline Jarczyk e Pierre-Jean Labarrière