Eckhart (HN) – homem interior e homem exterior

Version française extraite de l’édition Aubier / Montaigne, Paris, 1942, p.105-112.

Versão em português extraída de O Homem nobre de Meister Eckhart; tradução e comentários Osmar Schaefer e Agemir Bavaresco. Pelotas: Educat, 2004.


Schaefer & Bavaresco

Nosso Senhor diz no Evangelho: “Um homem nobre partiu para um país longínquo, a fim de receber um reino e voltou” (Lc 19,12). Nosso Senhor nos ensina, através destas palavras, quão nobre o homem foi criado em sua natureza e quão divino é o ponto ao qual ele pode chegar pela graça, e também mostra como ele pode chegar até ela. Além do mais, por estas palavras é atingida uma grande parte da Sagrada Escritura.

Deve-se saber, em primeiro lugar, e isto é muito claro, que o homem possui em si duas naturezas: corpo e espírito. Por esta razão, diz um escrito: quem se conhece a si mesmo, conhece todas as criaturas, porque todas as criaturas são ou corpo ou espírito. Eis porque as Escrituras dizem a respeito do homem que existe em nós, um homem exterior, e um outro homem interior. Ao homem exterior pertence tudo aquilo que é inerente à alma, ao mesmo tempo, envolto e misturado à carne, e que tem uma ação comum com um membro e num membro de todo e qualquer corpo, tais como o olho, a orelha, a língua, a mão e outros. E tudo isto a Escritura entende como o homem velho, o homem terrestre, o homem exterior, o homem inimigo, um homem servil.

O outro homem que está em nós, é o homem interior, que a Escritura chama um homem novo, um homem celeste, um homem jovem, um amigo, e um homem nobre. E diz Nosso Senhor: “Um homem nobre parte para um país longinquo e aí recebe um reino, e então volta”.

Ainda é preciso saber que São Jerônimo diz, e os mestres em comum acordo também o dizem, que todo homem, desde que ele é homem, possui um espírito bom, um anjo, e um espírito mau, um demônio. O bom anjo aconselha e, incansavelmente, move em direção ao que é bom, ao divino, ao que é virtude, ao celeste e ao eterno.

O espírito mau aconselha e move constantemente o homem em direção ao temporal, ao efêmero e ao que é vício, mau e diabólico. Este mesmo espírito mau confabula todo tempo com o homem exterior e, através dele, coloca armadilhas todo tempo ao homem interior; da mesma maneira, como a serpente confabulava com a mulher Eva e, através dela, confabulava com o homem Adão (cf. Gn 3,1 ss). O homem interior é Adão. O homem na alma é a árvore boa, que sempre, sem trégua, traz bons frutos, dos quais fala também fala Nosso Senhor (Mt 7,17). É também o campo no qual Deus semeou sua imagem e sua semelhança e semeia a boa semente, a raiz de toda a sabedoria, de todas as artes, de todas as virtudes, de toda bondade: semente de natureza divina (2 Pd 1,4). Semente de natureza divina é o Filho de Deus, Palavra de Deus (Lc 8,11).

O homem exterior é o homem inimigo e o maligno que, além do mais, tem semeado e lançado o joio (cf. Mt 13,24s). Dele diz São Paulo: encontro em mim o que me embaraça e é contrário ao que Deus manda e ao que Deus aconselha e ao que Deus tem dito, e diz ainda no mais elevado, no fundo de minha alma (cf. Rm 7,23). Em outro lugar, ele diz e se lamenta: “Infeliz de mim! homem infortunado que sou! Quem me livrará desta carne e deste corpo mortal?” (Rm 7,24). E ele diz também em outro lugar que o espírito do homem e sua carne lutam entre si, o tempo todo. A carne aconselha vício e maldade; o espírito aconselha amor de Deus, alegria, paz e toda virtude (cf. Gl 5,17 s). Quem obedece e vive segundo o espírito, segundo o seu conselho, este pertence à vida eterna (cf. Gl 6,8). O homem interior é este do qual fala Nosso Senhor, quando diz: “um homem nobre partiu para um país longínquo para aí receber um reino”. É a árvore boa da qual fala Nosso Senhor declarando que sempre ela traz bom fruto e jamais mau, porque ele quer bondade e inclina em direção à bondade, em direção à bondade que paira em si mesma, imune disto ou daquilo. O homem exterior é a árvore má, que jamais seria capaz de dar fruto bom (cf. Mt 7,18).

No que se refere à nobreza do homem interior, do espírito, e da indignidade do homem exterior, da carne, dos mestres pagãos, Cícero e Sêneca, dizem estes também que não existe alma racional sem Deus; a semente de Deus está em nós. Na medida em que ela dispusesse de um bom operário instruído e inteligente, ela se desenvolveria tanto mais e se elevaria até Deus do qual ela é semente, e o fruto tornar-se-ia da mesma maneira uma natureza de Deus. Semente de pereira se desenvolve em pereira, semente de nogueira em nogueira, semente de Deus em Deus (cf. 1Jo 3,9). Mas, se acontece que a semente boa dispõe de um operário estúpido e mau, então se desenvolve o joio e recobre e abafa a boa semente, de tal maneira que ela não poderá nascer e nem se desenvolver. Orígenes, um grande mestre, fala: considerando que Deus mesmo semeou, imprimiu e tornou inata esta semente, ela pode muito bem encontrar-se encoberta e escondida, e portanto, jamais destruída nem apagada em si mesma; ela arde e brilha, ilumina e queima e se inclina sem cessar para Deus.

O primeiro grau do homem interior e novo, diz Santo Agostinho, é quando o homem vive segundo o modelo das pessoas boas e santas, mas tateia ainda, segurando-se nas cadeiras e nas paredes, e ainda se alimenta de leite.

O segundo grau é quando ele não só considera apenas os modelos exteriores mesmo que sejam homens de bem, mas ele corre e mesmo se apressa em direção ao ensinamento e ao conselho de Deus e da divina sabedoria, dá as costas à humanidade e [volta] o rosto a Deus, livra-se do colo da mãe e sorri ao Pai celeste.

O terceiro grau é quando o homem, cada vez mais, se afasta de sua mãe e fica, progressivamente, longe de seu colo, escapa-lhe do cuidado, despoja-se do medo, de tal modo que, mesmo que pudesse agir mal e praticar injustiça, sem molestar a quem quer que fosse, ele não teria, no entanto, nenhuma vontade [para tanto]; é tão íntima e zelosa sua união de amor e de diligência para com Deus que não [descansa], enquanto não tiver sido introduzido na alegria e na doçura e bem-aventurança, onde aborrece tudo que lhe [= Deus] é desigual e estranho.

O quarto grau é quando o homem, cada vez mais, progride e firma raízes no amor e em Deus, de tal modo que se dispõe a aceitar todas as travessias, provações, adversidades, e a suportar sofrimentos voluntários de bom grado, com desejo e alegria.

O quinto grau é quando ele vive totalmente recolhido em si mesmo, em paz, silenciosamente repousando na riqueza e na supera-bundância da indizível e mais sublime sabedoria.

O sexto grau é quando o homem apagou [toda e qualquer] imagem e revestiu a imagem de eternidade de Deus, e chegou ao perfeito, ao total esquecimento da vida efêmera e temporal, e atraído e transformado em imagem divina, tornou-se Filho de Deus. Além disso, não há grau mais elevado, e lá está o repouso eterno e a bem-aventurança, porque a finalidade do homem interior e do homem novo é: a vida eterna.

A respeito deste homem interior nobre, onde a semente e a imagem de Deus foi semeada e está impressa, sobre a maneira pela qual a semente e a imagem da natureza divina e do ser divino, o Filho de Deus, aparece, sobre a maneira como se a apercebe e, às vezes, também, como permanece oculta, o grande mestre Orígenes apresenta uma comparação, a saber: que a imagem de Deus, o Filho de Deus, está no fundo da alma como uma fonte viva. Mas aquele que aí joga terra, quer dizer, um desejo terrestre, isto a bloqueia e a recobre, de tal maneira que ninguém a reconhece mais, nem mais a percebe; contudo ela permanece viva em si mesma e, quando se retira a terra que do exterior lhe foi jogada a mesma aparece então e se pode percebê-la. E ele diz que esta verdade é apontada no primeiro livro de Moisés, lá onde está escrito que Abraão cavou, em seu campo fontes vivas e que malfeitores as encheram de terra; e, depois que esta foi retirada, apareceram as fontes vivas (cf. Gn 26,14ss).

Aubier & Molitor