Duby Hugo de S. Victor

Georges Duby — Hugo de São Victor

Excerto de seu livro “As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo”
Hugo de Saint-Victor
Para isso deixemos Laon e voltemos a Paris — seguindo o movimento que lentamente transferia para as margens do Sena o que havia de mais audacioso na procura do conhecimento. Hugo de S. Victor é disso óptima testemunha. Era trinta ou quarenta anos mais novo que Anselmo. Vindo de Germânia para escutar as lições de Guilherme de Champeaux, cujo ensino derivava directamente da escola de Laon, ficara em Paris, ele próprio leccionando, a partir de 1125. A schola, a equipa que dirigia, não se fixou no claustro de Notre-Dame, mas no que constituía a sua projecção purificada: a colegiada de S. Victor, construída por Guilherme de Champeaux, afastada da cidade o suficiente para se conseguir o necessário isolamento, porém bastante perto para não se afastar da actividade secular, no que esta tinha de mais vivo; era um desses lugares regulares, exemplares, onde se vivia como os apóstolos, em abstinência, ao mesmo tempo que se divulgava o saber. No tempo de Hugo, Saint-Victor foi, face a Saint-Denis que se esforçavam por adornar cada vez mais, completando-a — este, a pompa das liturgias, aquele, o ascetismo no esforço da inteligência — a grande oficina das investigações pastorais, portanto pedagógicas: a escola dos mestres. Como ser um bom magister? Que ler, que explicar para prestar o melhor serviço aos que escutam e que por sua vez irão repetir? Todos os intelectuais punham a si mesmos estas interrogações ou, pelo menos, os que subiam irresistivelmente na Igreja, que pouco a pouco se apropriavam do que havia de mais brilhante na função episcopal e a quem o orgulho levava a identificar-se com o próprio Cristo. Veja-se Abelardo, prescrutando o mistério da Trindade, retomando o jogo de correspondências proposto por Santo Agostinho entre as três pessoas e as três categorias, mens, notitia, amor mas rectificando-o, substituindo à segunda uma outra tríade: “poder”, “sageza” e “caridade” — sendo a “sageza” um atributo da segunda pessoa. A imagem que o Ocidente faz de Jesus tem a sua história. Começava então o tempo em que a figura do Professor se esforçava por ofuscar, no meio de que falo, a do Cordeiro do Apocalipse, do Redentor dos Sinópticos. Será o mais brilhante sinal da promoção dos mestres que, compensando o recuo do monaquismo, revolucionou nessa região, durante a primeira metade do século XII. a organização da alta cultura ?

Uma parte da obra de Hugo de Saint-Victor propõe-se dar resposta a tais interrogações. Encontra-se no seu Didascalion o projecto — magnífico — de renovação de um sistema de ensino. O quadro, outrora herdado — da antiguidade romana pelos pedagogos carolíngios, alarga-se prodigiosamente; o trivium já não passa de um vasto edifício escancarado às duas perspectivas que o clero moderno deve seguir: a contemplação e a acção. Hugo — é a sua primeira preocupação — divide as disciplinas do saber; classifica-as logicamente; “ordena-as”. Parece-me digno de nota que, pela classificação que propõe, a amplificação se descobre num leque de ternaridades. O movimento — o de toda a pedagogia — conduz do elementar, do simples, do esquemático, ao complexo. De igual maneira se alarga progressivamente, na época de que falo, a visão dos clérigos, ao considerarem o mundo social: a figura triangular, inicial, infantil, dá lugar a essa multiplicidade que se descobre quando se sai do quadro do claustro e se penetra nas ruelas da cidade com os olhos francamente abertos para o desabrochar de todas as formas de uma civilização, para o mundo e os tumultos do seu crescimento. Com efeito, o edifício didáctico tem, por esqueleto, uma tríade hierarquizada. Três níveis — as três etapas de uma ascenção, de uma sublimação da matéria. Depois, as “artes mecânicas”, exercícios do corpo, entre os quais, em baixo, na primeira fundação, se acha a agricultura; o itinerário pedagógico conduz ao andar secundário do velho trivium onde se aprende, em três fases sucessivas, as técnicas do discurso e do raciocínio, até ao grau dominante, o ensino verdadeiramente superior, ele próprio cindido em duas camadas sobrepostas. Cada uma destas camadas é tripartida: as três disciplinas de aplicação que formam na “prática” a ética, a política e a economia (desembocando esta no serviço da res publica, portanto do príncipe), suportando as três disciplinas “teóricas”, que permitem apreender as leis do universo e a razão de Deus: a física, a matemática e, por fim, ponto de chegada, súmula de toda a formação, a teologia.

A coerência do conceito situa, simetricamente, paralelamente a este programa de estudos, reflexão de um mestre acerca do seu “mester”, o seu ofício, ao mesmo tempo que organigrama de uma fase iniciática, uma outra forma de classificação, análoga, mas projectada para fora da escola, respeitante ao homem, à posição do homem no universo. Se lermos o De sacramentas christianae lidei, onde se acha reunido todo o ensino ministrado por Hugo aos futuros pregadores, ficamos surpreendidos com o vigor das preocupações escatológicas: todo o discurso é construído em função dos fins derradeiros dessa vida que começa com a morte. Isto lembrar-nos-ia, se tanto fosse preciso, a dimensão espiritual da escola, onde os exercícios de leitura, de meditação e de oração se alternavam e por fim se confundiam. Falo de homens que são meus irmãos, falo de professores. Não posso esquecer: todos os seus gestos eram gestos de padres, todas as palavras eram as palavras da liturgia; e a schola, antes de tudo o mais, era um conjunto de homens piedosos: toda a acção de ensinar tinha, como finalidade, o eterno. Assim se explica, com efeito, a correlação verdadeiramente essencial entre as obras didácticas de Hugo de Saint-Victor e os trabalhos místicos de Dinis, o Areopagita, que, em Paris, Hugo não deixou de ler e de comentar. Na verdade, o esquema — ternário — das hierarquias dionisianas dirige o pensamento de Hugo de Saint-Victor, tão fortemente quanto governava o de Adalberão e o de Gerardo, quando ele se interroga sobre a ordenação social a fim de guiar os que partiriam a pregar, a confessar, a salvar, pela palavra, o povo das cidades.

O primeiro exemplo tirado do Didascalion é a definição que dá ao económico, a mais importante das três disciplinas práticas. “É a porta da pátria do homem. Aí se regulamentam os estados e as dignidades. Aí se distinguem as funções e as ordens… (crer-se-ia estar a ouvir Loyseau — em todo o caso, o que Hugo chama o económico é, justamente, o cometimento intelectual que visa substituir os fantasmas, as imagens simplistas da sociedade com que os sábios de outrora se contentavam e que o pensamento comum ainda recebe, por um conhecimento lógico, científico, e que consiste em classificar mais precisamente, mais lucidamente, em desmultiplicar, em apertar as malhas da rede. Mas sobretudo… aí se ensina aos homens que se esforçam por atingir o céu, a forma de chegar, segundo a ordem dos seus méritos, à hierarquia dos anjos. Parte-se pois de um esforço para observar — e eis a novidade do século XII. Mas logo paralisada, aprisionada pelos pressupostos, pelo respeito que se tem pelos Auctores, pelos livros venerandos, os mesmos que Adalberão e Gerardo haviam utilizado e a cujo domínio não se consegue fugir. Temos aqui Santo Agostinho: os homens que se apressam, em procissão; ou Dinis: o retorno à exemplaridade celeste e a idéia de que a sociedade humana se integrará com muita mais facilidade, na sua verdadeira “pátria”, para lá do véu das aparências, fora do transitório, do corruptível, de que ela será talvez hierarquicamente ordenada segundo o modelo da sociedade — melhor — dos anjos. Para construir uma moral prática, o mestre, antes de considerar o real, deve olhar o céu. Sempre também dominadora a influência do sonho e porque esse sonho continua a ser o de Dinis, reina em toda a obra de Hugo de Saint-Victor o esquema triangular, trinitário.

O segundo exemplo que cito é Das Arras da Alma . A Igreja — a sociedade dos cristãos — encontra-se neste livro comparada ao triclinium, a sala do banquete nupcial, com os seus três leitos, em cada um dos quais, pela tradição romana, Hugo de Saint-Victor vê que se instalam três convivas. Escolhe esta metáfora porque, segundo diz, a Igreja contém três “ordens” — as três ordens de mérito, as de Jerónimo e de Agostinho. Na Arca de Noé moral (o título evidencia o conceito escolástico: passar do comentário da Bíblia para a construção de uma ética), Hugo fala de três casas, porque, diz ele, há três “ordens de fiéis” — e trata-se ainda de três níveis de progressiva emergência fora do carnal: “os primeiros usam licitamente o mundo (são as “pessoas casadas”), os segundos fogem do mundo para o esquecer (são os continentes), os terceiros nem se lembram do mundo e acham-se mais próximos de Deus”. Três graus de desinteresse. Veja-se como o discurso de Hugo de Saint-Victor e o de Bernardo de Clairvaux concordam: e como as necessidades da análise histórica me levaram a separar os clérigos dos montes, insisto no ponto que correríamos o risco de esquecer: a estreita comunidade de pensamento que, ao longo de todo o século XII, uniu uns e outros.

Todavia, a preocupação de esquecer o mundo não detém Hugo, que procura tornar os que o escutam mais capazes de reformar a sociedade carnal, de olhar pela terra. O que ele faz nesta enciclopédia que é o De sacramentis. Vemo-lo assim libertar-se do cenário das tríades, para se deixar no entanto dominar por uma outra forma ideológica, a gelasiana, binária. Ao falar da realidade, do concreto, da vida, Hugo afirma, tal como o cardeal Humberto, tal como todos os gregorianos, a existência de duas potestates: um poder “terreno”, “secular”, e um poder “espiritual”. Diz ele: “há com efeito duas vidas, uma da terra e outra do céu, uma corpórea e a outra espiritual” . “Em cada um destes poderes há diversos graus (gradus) e diversas ordens (ordines) e força”. Quantas? Sete. Sete de um lado e do outro; sete entre os clérigos, porque há sete no sacramento da ordem; sete entre os laicos, por simetria. Hugo não vê o que se passa para além dos muros da colegiada; não observa: discorre, convencido de que o organismo social, porque vem da razão divina, é racionalmente construído sobre um jogo de equilíbrios. Força ainda da idéia preconcebida, de um gosto inveterado pelas correspondências simbólicas. No entanto, conforme sucede no Didascalion, encontra-se aqui diversificada, desenvolvida em sequências harmónicas, uma estrutura simples. E desta vez, a figura da organização social exemplar saiu inteiramente da ternaridade.

Um receio, todavia: que esta multiplicação das tarefas possa parecer dispersão, explosão. O que leva Hugo de Saint-Victor a procurar a unidade do conjunto pelo recurso à imagem do corpo. “A santa igreja é o corpo de Cristo, chamado à vida por um só espírito, unificado por uma só fé e santificado”. Deste corpo, Cristo é a cabeça que, reunindo os dois poderes, coordena todos os graus. “Os dois lados são distribuídos, um e outro, sob uma só cabeça; são como que deduzidos de um só princípio (outra vez aqui a lógica) e imputados a um”. São evidentes as relações entre o uso que Hugo de Saint-Victor faz da figura metafórica e a reflexão sobre a encarnação que conduz a ela, estimulada pelo espectáculo de um mundo onde a natureza se acha, pouco a pouco, dominada pelo esforço conjunto dos homens. Tal como na pessoa de Cristo, na pessoa do homem imbricam-se duas naturezas, como também duas “ordens” na sociedade humana. “As duas ordens dos laicos e dos clérigos estão unidas na homogeneidade, como os dois lados de um só corpo” . Todavia, para que a ordem seja mantida, é preciso que um obedeça ao outro. Todos sabem que um dos lados vale mais que o outro: é o direito. Os laicos estão pois colocados do lado esquerdo, o lado sinistro, o subordinado. Isto, se não na mesma data em que Hugo escreve, pelo menos poucos anos depois, apareceu em Paris no tímpano esculpido de Notre-Dame (depois colocado na nova fachada, a actual): vê-se aí a Virgem, ladeada por duas personagens que representam os dois “poderes”. O rei Luís VII está à esquerda desta figura feminina — que, sendo “carne” de Deus, instrumento da Sua encarnação, representa o poder supremo, sageza e força, ajoelhada, acompanhada por aquilo que, no relato evangélico da infância, vem do mundo — os pastores, os reis magos, Herodes; à direita, de pé, de maior estatura, em evidente postura de superioridade, o bispo .

No entanto, para terminar, Hugo passa da dualidade para o ternário. Certamente, há duas vidas na terra: “uma na qual o corpo vive da alma (e aos clérigos cabe alimentar esta existência para os intelectuais muito puros como são os cónegos de Saint-Victor, pela distribuição da eucaristia e pelo sermão), a outra na qual a alma vive de Deus” . Isto implica a existência de um terceiro campo, intemporal, e que os clérigos, ocupando a segunda área, intermédia, comunicando com os anjos pelo jogo das conexões hierarquizadas que Dinis, o Areopagita, descreveu, tenham a função de intercessores entre o céu e a terra. Assim se acha reunido o que Gerardo e Adalberão tiveram em mente. Também se retoma o que constituía um dos elementos mais importantes do sistema ideológico que a ambos haviam edificado: a idéia fundamental, derivando da noção de encarnação, perfeitamente ilustrada pela metáfora corporal da mutualidade de serviços: “assim como, no corpo humano, cada membro tem a sua função, particular e distinta e contudo sem que qualquer deles aja por si mesmo e para si mesmo, também no corpo da Igreja, cada um está com todos e todos estão com cada um”. Permuta, caridade; vê-se claramente que esta idéia conduz à funcionalidade.

Detive-me no pensamento de Hugo de Saint-Victor. Vejo que nele se reflecte qualquer coisa semelhante a uma desordem. Com efeito, deu-se uma viragem, tanto na escola como nas oficinas dos escultores: libertar-se do sonho; descobrir que o carnal talvez tenha algo de bom. O gosto pela metáfora corporal é também sinal de uma muito lenta, insensível, inconsciente, reabilitação da carne. Hugo foi o criador desta imagem. Tirou-a dos tratados que lia, uma vez mais, do fundo carolíngio. Já em 841, Walafrid Strabon se servira delas . Como que uma vergonha, um desgosto pelo próprio corpo, fez com que o renegassem durante três séculos. Hugo ousou utilizá-lo perante os alunos; ao mesmo tempo, as Scholae, as equipas de investigação disciplinada, iam-se interessando mais pela natureza, aplicando-se sobretudo — o que me parece de influência muito importante sobre toda a evolução da alta cultura — a desvendar o mistério da encarnação. Os eruditos ocupavam-se de outra coisa, afadigavam-se a classificar, de forma mais precisa e rigorosa, os homens, as plantas ou as estrelas. Que iria passar-se, se tal esforço de lucidez e de inteligência revelasse a insuficiência dos quadros tradicionais da taxinomia social, aqueles que os padres da Igreja encobriam com a sua autoridade? Inquietação. Hugo de Saint-Victor vivia entre livros. Diversos sistemas simbólicos muito simples, vindos desses livros, haviam-se-lhe implantado na memória. Não conseguia libertar-se deles. Eis que Hugo se apercebeu da excessiva complexidade do real e que nenhum desses sistemas conseguia por si só reduzir à ordem o concreto da vida. Tentou então servir-se de todos, procurando combiná-los. O que, em determinados momentos do seu ensino o fez falar tal-qual Adalberão. Atraía-o para o sistema de Adalberão o mesmo que encontrara em Dinis: as hierarquias e a afirmação de Walafrid Strabon de que a ordem nasce da reciprocidade dos serviços. O conceito de função, de ofício, ocupava no seu espírito uma posição central. Porém, o que sabia de uma sociedade que os alunos iriam ter de dirigir convencera-o: não se podia reduzir estas funções a três. A figura trifuncional deixou pois de ter, para ele, utilidade pedagógica.