(Michel Henry MHE)
E outro aspecto desta possibilidade da Encarnação do Verbo que se esclarece para nós, outro argumento da gnose que desmorona. Aos olhos desta, a dificuldade não era somente compreender como o Logos eterno e incorporeo — eterno porque incorporeo — podia unir-se [339] a um corpo terrestre putrescível. Lida a relação em sentido inverso, supondo-se que o Verbo encarnou em Cristo, ressurge a aporia. “Se Cristo nasceu nesse momento, ele não existia antes.” A gnose não leu, portanto, a proposição joanina. Foi o Verbo que encarnou. Não somente a Encarnação do Verbo era possível na medida em que é nele que toda carne se une a si, mas também isto: como, segundo a proposição joanina, é ele que se fez carne em Cristo, é igualmente falso pretender que Cristo, que é o Verbo, não existisse antes de sua vinda à história, Ele, em quem tudo foi criado no início, em quem toda carne veio a si mesma. E verdade que Cristo tem duas naturezas, a do Verbo e a de um homem, e que assumiu a segunda até o fim, até a agonia na Cruz. Mas essas duas naturezas não são iguais: segundo a ordem do processo da Vida absoluta, é a primeira que gerou a segunda, por efeito de um amor superabundante, dizia Irineu: em toda gratuidade.
É então o “um e mesmo” de Cristo, sua identidade tão difícil de pensar pelos grandes concílios futuros — os quais continuam a se exprimir num horizonte grego- que se tornam mais que inteligíveis uma vez reconduzidos por Irineu às fontes evangélicas. Daí o imenso desdobramento de “provas” pelas Escrituras, diversas vezes citadas e comentadas — “Que João não conheça senão um só e mesmo Verbo de Deus, que é o Filho único e que encarnou para nossa salvação, Jesus Cristo nosso Senhor (…)”, “Para que nós não supuséssemos que um fosse Jesus e outro o Cristo” –,1 por um lado; e, por outro lado, essa justificação filosófica surpreendente encontrada nas próprias fontes da Vida. Para além dessa possibilidade transcendental da Encarnação do Verbo, todavia, é sua realidade enquanto fundamento da salvação o que importa, em última instância. Irineu designa sem equívoco o lugar onde essa salvação deve cumprir-se, e que não pode ser senão o da realidade. Ei-nos novamente diante do paradoxo cristão: o lugar da salvação é também o [340] do pecado, sua realidade é recortada num mesmo tecido: é nossa própria carne precisamente, nossa carne finita.
Ora, no texto joanino, que repete evidentemente as palavras de Cristo, a coexistência do Verbo e do homem em Cristo não se apresenta em nenhum momento como uma reunião de duas realidades opacas e irredutíveis. Muito pelo contrário: um só e mesmo princípio de inteligibilidade — ou, antes, de Arqui-inteligibilidade — atravessa o Verbo e o homem para uni-los em Cristo. Essa Arqui-inteligibilidade é a autorrevelação da Vida absoluta. O fato de esta comandar a relação fenomenológica de interioridade recíproca do Pai e do Filho tem que ver com o fato de que a autogeração da Vida absoluta seja sua autorrevelação no Si do Primeiro Vivente. Que a Arquipassibilidade dessa Arquirrevelação seja, em sua efetuação fenomenológica, a Arquicarne pressuposta em toda carne, eis o que a fenomenologia da Encarnação longamente mostrou. Mas tudo isso é dito no texto de João, que apresenta uma estrutura formal do tipo “assim como… assim também…”. Sua pretensão de dar conta da similitude de estrutura entre a relação fenomenológica de interioridade recíproca da Vida absoluta e de seu Verbo, por um lado, e a relação de interioridade fenomenológica recíproca entre esse Verbo e todos os viventes em Cristo, por outro — essa pretensão dificilmente pode ser contestada. De todos esses enunciados equivalentes — que se referem a um Além radical, a esse “Outro distinto do mundo” que é a Vida absoluta na Parusia de sua autorrevelação radical que é sua “glória” (“Eles não são do mundo, assim como eu não sou do mundo”) –, retenhamos o último: “E eu lhes dei a glória que tu me deste, para que eles sejam um como nós somos um: eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade” [17, 22-23].
Mas é do corpo místico de Cristo que se trata. Essa unidade de todos os homens em Cristo constitui precisamente a primeira pressuposição de Agostinho — “eles mesmos sou eu” que é também a primeira condição da salvação, uma vez que somente se todos os homens estão em Cristo, um com ele, se são o próprio Cristo, este, santificando-se a si mesmo, os santifica a todos em si, salvando-os a todos ao mesmo tempo.
O corpo místico de Cristo em que todos os homens não constituem senão um, nele, é uma forma-limite da experiência do outro; como tal, ele remete a esta. Do ponto de vista fenomenológico, o corpo místico só é possível se a natureza da relação que os homens são capazes de estabelecer entre si puder atingir esse ponto-limite, em que eles já não constituem senão um; todavia, segundo as pressuposições do cristianismo, que são igualmente as de uma fenomenologia da Vida, isso só pode se dar se a individualidade de cada um for preservada, e até exaltada, e não abolida em tal experiência, se esta deve ainda ser a experiência do outro.