Richard Rolle — Fogo do Amor (I, II)

Deve-se proclamar a todos os habitantes deste triste lugar de exílio onde vivemos, ninguém pode sentir em si o amor da vida eterna e receber a unção da doçura celestial, se não se voltar inteiramente para Deus. Sem esta conversão total para Deus e o abandono, ao menos em espírito, de todos os bens terrestres, é impossível saborear, ainda que minimamente, a suavidade do amor divino.

Aqueles que amam verdadeiramente Deus sabem bem que, nos primeiros anos da conversão, não é possível atingir o ápice da devoção, nem essa embriaguez que a doçura da contemplação produz. Em raros intervalos, e por alguns instantes a princípio, será permitido saborear algo dos bens celestes ]; mas é preciso progredir pouco a pouco e fortalecer-se nos caminhos espirituais. E só depois de regular os costumes e elevar-se — tanto quanto nossa leveza o permite — à estabilidade do espírito, após alcançar certa perfeição, ainda que a custo de penosos trabalhos, será concedido à alma experimentar a alegria do amor divino.

Mesmo aqueles que alcançam uma virtude eminente não experimentam imediatamente o fogo da caridade criada ou incriada; não são como que liquefeitos na fornalha do amor, nem tornados capazes de cantar dentro de si o canto do louvor divino. O mistério desse estado permanece oculto à maioria dos homens, só é revelado a algumas almas escolhidas de maneira especial. Poucas são, de fato, as almas que recebem assim do alto essa melodia infusa, e podem depois como que devolvê-la a Deus cantando sua glória, e expressá-la em notas suaves e neumas ], que traduzem o louvor sobrenatural. E, no entanto, aquele que não atinge esse grau, quem ousaria contá-lo entre os contemplativos, pois o Salmista, falando em nome deles, diz: “Entrarei na casa de Deus ao som da voz da alegria e da confissão” (Sl. XLI, 5), dessa confissão que é o louvor, pois é “o canto daquele que participou do banquete” da suavidade celestial.

Os perfeitos, que são admitidos a essa plenitude da amizade eterna, vivem como saciados dessa doçura inesgotável e inefável que extraem do cálice glorioso da caridade; no mistério dessa festa celestial, alimentam sua alma com uma ardor beatificante e fortalecem-se na alegria que lhes proporciona esse eletuário eterno.

Tal é o refrigério dado àqueles que aspiram ao mais alto grau da herança eterna. Têm as provações por sorte aqui embaixo; mas não se recusam a sofrer por pouco tempo para ocupar depois, para sempre, os assentos do céu. São eleitos entre os homens de toda raça para gozar do amor especial de nosso Criador e receber dele uma coroa de glória. Entre os serafins, no mais alto do céu, assentar-se-ão abrasados de amor aqueles que passaram a vida sentados na solidão, mas cujo espírito já vivia com os anjos. Já aqui embaixo, tendiam com todas as forças para Cristo, a quem só amavam, e em cujo louvor cantavam este hino do amor eterno: “Ó fogo doce como o mel mais suave, fogo mais deleitável que todas as riquezas; ó meu Deus, ó meu amor, penetrai aquele que foi trespassado por vossa caridade, aquele que foi ferido por vossa beleza. Consolai o que languisce, curai o que sofre, mostrai-vos àquele que vos ama. Eis que em vós está fixado todo o meu desejo; todo o meu ser tem sede de vós. E vós não me abris. Pelo contrário, desviais o rosto, fechais a porta, escondeis-vos e pareceis rir dos sofrimentos do inocente.

“Vinde, pois, ó Dileção eterna, vós que só sois digno de amor, vós que nos elevais acima de tudo o que é baixo e muitas vezes nos arrebatais até a vista de vossa Majestade divina. Tudo o que eu tinha, dei por vós; tudo o que eu podia ter, rejeitei para que fizésseis vossa morada em minha alma. Não deixeis aquele que vedes arder de tantos desejos e suspirar por vossos abraços. Concedei-me encontrar em vós todo o meu repouso, para que enfim eu consiga ver-vos sem fim em vosso reino. Amém.”