Evágrio – Vanglória (FOJ)
FOJ — A VANGLÓRIA (hyperephania)
De todos os pensamentos, o da vanglória é o que está composto por mais elementos. Com efeito, abraça quase toda a terra e abre as portas a todos os demônios, tal como o faria algum malvado traidor numa cidade. Portanto, humilha o intelecto do solitário, enchendo-o de discursos e objetos e corrompendo as preces com as quais ele tenta curar todas as feridas de sua alma.
Todos os demônios, uma vez vencidos, fazem crescer este pensamento e por seu intermédio, encontram um novo acesso às almas. E é assim como fazem que a última situação das almas seja pior que a precedente. Daqui nasce também o pensamento da soberba. Isto é o que tem feito desmoronar dos céus sobre a terra o selo da semelhança a coroa da beleza (Ez 28:12). Refugie-se, pois, não se demore, porque pode acontecer que se entregue a outros a vida, e a riqueza a quem não tem misericórdia. Este demônio é afugentado pela oração contínua e por não se fazer nem dizer nada do que se leva a cabo pela maldita vanglória.
Assim que o intelecto dos solitários alcança uma certa impassibilidade, eis que adquire o cavalo da vanglória e em seguida corre pelas cidades, enchendo-se sem medida de louvores à sua glória. Mas, se por uma disposição da providência, se encontra com o espírito da fornicação, ficando assim encerrado num chiqueiro, isto lhe ensinará a não mais deixar o leito antes de ter obtido uma perfeita saúde, e a não imitar os enfermos indisciplinados quem, arrastando os rastros de sua doença, se entregam abusivamente às viagens e aos banhos, tendo assim recaídas. Portanto, permaneçamos sentados, cuidemos de nós mesmos, de tal modo que, avançando na nossa virtude, não permitamos que o mal ressurja, e que, ao retomar o conhecimento, nos atordoe uma multidão de meditações. E logo novamente, ao levantar, veremos quão mais clara é a luz de nosso Senhor.
Não se pode escrever sobre todas as astúcias dos demônios; sente-se pudor ao repassar todas as suas maquinações, temendo pelos leitores mais simples. Ouça, no entanto, as astúcias do demônio da fornicação.
Quando alguém consegue se tornar impassível com respeito à sua concupiscência, e seus maus pensamentos tendem a se esfriar, é então que este demônio introduz imagens de homens e mulheres que brincam entre eles, tornando-o solitário espectador de coisas e atitudes procazes. Mas não é esta uma tentação que dure por muito tempo. A oração contínua e um regime austero, a vigília e o exercício de meditações espirituais, dissipam a tentação como uma nuvem sem água. Por momentos este malvado faz da carne sua presa, forçando-a a sentir um ardor irracional, e se aferra a milhares de outras coisas, às quais não é necessário se referir publicamente nem pôr por escrito.
Contra pensamentos deste tipo se é ajudado pelo ferver da cólera que se move contra o demônio. Este teme muitíssimo esta cólera, que se agita contra os pensamentos e destrói seus raciocínios. E este é o pensamento da Palavra: Irritai-vos e não pequeis (Sal 4:4). Esta cólera é uma medicina útil oferecida à alma durante as tentações. Às vezes acontece que o demônio da ira imita o outro demônio, e esboça a forma de algum filho, ou amigo, ou parente, no momento de ser ultrajado por gente indigna, excitando assim a cólera do solitário, para que diga ou faça algo mau contra as imagens que se movem no seu pensamento. É necessário atender por um instante a estas imagens, cuidando-se de arrancar pronto a mente delas, a fim de não detê-la muito tempo, para que não se inflame secretamente em tempo da oração. Nestas tentações caem fundamentalmente os coléricos e os que se deixam arrastar facilmente por seus impulsos. Estes estão afastados da prece pura e do conhecimento de nosso Salvador, Jesus Cristo.
O Senhor tem confiado os conceitos deste século ao homem, como as ovelhas a um bom pastor. Escrito está: A cada homem tem sido posto um conceito em seu coração, e tem unido a ele, a modo de ajuda, a concupiscência e a ira. Por meio da ira se deve pôr em fuga os pensamentos dos lobos e, mediante a concupiscência, se deve amar as ovelhas, ainda quando se encontre encurralado pelas chuvas e os ventos. A tudo isto o Senhor tem agregado também a lei, para que alimente as ovelhas; e um lugar verde, água que reconforta, e o saltério, a cítara, a vara e o bastão. E assim deste rebanho o pastor obterá sua nutrição, se vestirá e recolherá o feno dos montes. Tem-se dito: Qual é o pastor que apascenta o gado e não se nutre de seu leite? (1 Co 9:7). Deverá o solitário custodiar de dia e de noite seu rebanho para que não seja devorado pelas feras ou caia em mãos dos ladrões. Mas se num lugar selvático algo parecido acontecesse, em seguida deverá este arrancar a presa da boca do leão ou do urso. Por exemplo, o conceito de irmão é devorado por nós se o alimentamos com vil concupiscência; o do dinheiro e o do ouro, se o albergamos unido à avidez; e assim em tudo o que se refere aos pensamentos relativos aos santos carismas, se os alimentamos na nossa mente junto à vanglória. Do mesmo modo acontece com todos os outros conceitos, se se tornam presa das paixões. E não basta com velar durante o dia, se deve estar vigilante também de noite. Pode acontecer que se perca o que é nosso, ainda com fantasias turvas ou malvadas. Vejam o que diz São Jacó: Não te tenho trazido ovelhas devoradas pelas feras: tenho ressarcido os furtos do dia e da noite, E fui devorado pelo calor do dia e pelo gelo da noite. O sono se afastou dos meus olhos (Gn 31:39 e ss).
Se posteriormente o grande cansaço gerasse em nós preguiça, subir-se-á um pouco mais pela pedra do conhecimento e se tomará o saltério, fazendo vibrar suas cordas mediante o conhecimento das virtudes. E novamente se levará nossos rebanhos pelo monte Sinai, para que o Deus de nossos Pais se dirija a nós de entre os arbustos e nos presenteie com essas palavras que obram sinais e prodígios.
A natureza racional, condenada à morte pela malícia, tem sido ressuscitada por Cristo mediante a contemplação de todos os séculos. E o Pai ressuscita a alma que tem morrido de morte de Cristo, mediante seu conhecimento. E é isto o que diz Paulo: Se estamos mortos com Cristo, cremos que também viveremos com Ele.
Quando o intelecto se tem despojado do homem velho, se reveste do que provém da graça, e é então que no tempo da oração verá a própria estrutura, símile de algum modo, ao zafiro ou à superfície celeste. Coisas estas que as Escrituras indicam como o lugar de Deus, visto pelos anciãos no monte Sinai.
De entre os demônios impuros, alguns tentam o homem enquanto homem, outros o aturdem como um animal que tem perdido a razão. Os primeiros, ao se aproximar, insinuam em nós pensamentos de vanglória, de soberba, de inveja ou de acusação: coisas estas que não perturbam nenhum ser irracional. Os outros, no entanto, se aproximam excitando a cólera ou a concupiscência contra natura. E é que estas paixões se tem em comum com os seres irracionais ainda que estejam escondidas pela natureza racional. É por este motivo que o Espírito Santo, quando se refere aos pensamentos que acodem aos homens, diz: Eu tenho dito: deuses sois, e filhos todos do Altíssimo mas como homens morrereis, e caireis como cai qualquer príncipe (Sal 81:6). E o que diz àqueles que se movem de modo irracional? Nos diz: Não sejais como o cavalo e como o mulo que não têm entendimento: que hão de ser domados com freio e rédeas para que obedeçam (Sal 31:9). E se a alma que peca, morrerá (Ez 18:4), é evidente que os homens morrem como homens e pelos homens são sepultados. Mas os animais sem razão, se morrem ou caem, são devorados pelas aves de rapina ou pelos corvos. Disto tem se dito que as crias dos uns invocam o Senhor, e as dos outros, se banham em sangue. O que tenha ouvidos para ouvir, que ouça (Mt 11:15).
Quando algum inimigo se aproximar de ti, te ferir e tu queiras dirigir tua espada ao seu coração, tal como está escrito, faça como se te diz. Analise em ti mesmo o pensamento que te tem sido posto. Veja que coisa é, de que elementos se compõe e o que precisamente aflige mais a tua mente. Se quer dizer isto: te tem o inimigo trazido o amor pelo dinheiro? Tu fazes uma distinção entre o intelecto que tem recebido o pensamento do ouro, o pensamento mesmo do ouro e o ouro em si mesmo e a paixão que nos leva a amar o dinheiro. Pergunte-se a seguir: De entre tudo isto, que coisa é pecado? Talvez o intelecto? E como, então, é a imagem de Deus? E então, como se vincula ao conceito do ouro? Ninguém que tenha intelecto poderia jamais afirmá-lo. É talvez pecado o ouro em si mesmo? Por que então foi criado? Concluir-se-á, pois, que a causa do pecado é a quarta. Não é um objeto que tenha uma existência em si mesmo, nem o conceito de um objeto, senão que é um prazer inimigo do homem, gerado por nossa própria e livre vontade, e que força o intelecto a se servir mal das criaturas de Deus. E é à lei de Deus a quem lhe foi confiado rescindir este prazer.
Enquanto se indaga deste modo, o pensamento será destruído, dissolvendo-se na sua própria contemplação. O demônio se afastará de ti, quando a tua mente seja levada ao alto por tal conhecimento. Se, pelo contrário, não se quer se servir da tua espada, mas se quer deitar mão da tua funda, tire uma pedra da tua bolsa de pastor e considere o seguinte: Como é que os anjos e os demônios se aproximam do nosso mundo e nós não nos aproximamos dos seus mundos? Nós não podemos, por certo, aproximar mais os anjos a Deus, se nos propomos fazer dos demônios seres ainda mais impuros. E mais ainda: como é que Lúcifer, que surge pela manhã, foi atirado à terra, e considera o mar como uma ampola e o mais profundo dos abismos como um prisioneiro de guerra? E tudo o faz ferver como numa olaria acesa e fervente (Jb 41:22 e ss) porque a todos quer turvar com sua malícia e a todos dominar. A consideração de todas estas realidades fere verdadeiramente o demônio e põe em fuga todo o seu exército. Mas isto o podem fazer todos aqueles que têm se purificado e veem as razões das realidades criadas. Os que estão impuros não conhecem a contemplação de tais razões e, ainda que repetissem uma fórmula aprendida por outros, não serão escutados, com motivo de todo o pó e o tumulto causado pelas paixões durante a batalha. É absolutamente necessário, pois, que toda a turba de filisteus permaneça imóvel, para que apenas Golias enfrente o nosso Davi.
Da mesma maneira se servirá desta distinção entre as partes em guerra e a imagem que se nos apresenta contra todos os pensamentos impuros.
Quando acontecer que algum pensamento impuro fuja com toda rapidez, se deverá buscar a causa a fim de se entender como isso tem se produzido? Em geral, isto acontece já seja porque o objeto em questão falta, ou porque se trata de um elemento difícil de obter, ou porque se está entrando na região da impassibilidade. Por estes motivos o inimigo não pode nos vencer. Se por exemplo, a algum solitário se ocorre que lhe seja confiada a guia espiritual da cidade, é difícil que se detenha a fantasiar a propósito disso, pelos motivos que se mencionou anteriormente. Mas se acontecesse que algum se converte em guia espiritual de uma cidade qualquer, e o seu pensamento não sofre alterações, isto significa que tem alcançado a beatitude da impassibilidade.
Não é necessário saber destas coisas para se ter prontidão e força; para que se possa ver se se tem cruzado o Jordão e se está perto das palmeiras ou bem se ainda se está no deserto e sob os golpes dos estrangeiros. Pois se vê, por exemplo, como o demônio do amor ao dinheiro é versátil e extraordinário na sua capacidade de engano. Frequentemente, angustiado pela nossa total renúncia, finge ser ecônomo e amante dos pobres, recebe livremente hóspedes que ainda não se têm aproximado, dá esmolas aos que carecem de alguma coisa, visita as prisões da cidade, resgata aos que têm sido vendidos, nos sugere nos unirmos a mulheres ricas… Talvez nos aconselhe nos aproximarmos a outros, àqueles que possuem uma bolsa bem abastecida! Deste modo, se vai desviando a alma; pouco a pouco, a rodeia de pensamentos provenientes do amor ao dinheiro e a entrega ao demônio da vanglória. E isto introduz uma multidão de pensamentos que glorificam o Senhor por nossos negócios, e manipula a alguns que, pouco a pouco, falam de sacerdócio em nosso lugar. Faz prognósticos sobre a morte do sacerdote a cargo, e prediz que não poderá se salvar, devido a todo o mal que tem atuado.
E assim este mísero intelecto, apanhado por tais pensamentos, entra (mentalmente) em luta com aqueles que se lhe opõem, pronto a oferecer dons àqueles que o aceitam e aprovam os seus bons sentimentos. Inclusive imagina entregar àqueles que se lhe sublevam, em mãos dos magistrados e os expulsar da cidade! Finalmente, posto que leva dentro de si estes pensamentos e lhes dá voltas, faz que em seguida se apresente o demônio da soberba, quem, cintilando ininterruptamente relâmpagos e dragões alados na cela, acaba por ocasionar a loucura.
Mas nós, para conjurar a desgraça que tais pensamentos possam produzir, queremos viver dando graças na nossa pobreza! De fato, nada se tem trazido a este mundo nem nada, por certo, se poderá levar com nós. Sempre que se tenha com que comer e com que se cobrir, conformemo-nos com isso (1 Tm 6:7 e ss). E se lembre de Paulo, que declara: O amor pelo dinheiro é a raiz de todos os males (1 Tm 6:10).
Todos os pensamentos impuros, quando por causa de nossas paixões se entretêm em nós, conduzem o intelecto à ruína e à perdição. Com efeito, assim como a ideia do pão ronda constantemente ao faminto por causa de sua fome, e o pensamento da água ao sedento por causa de sua sede, do mesmo modo, também os pensamentos a propósito das riquezas, e as reflexões sobre os turvos pensamentos produzidos em nós pelos alimentos, se detêm dentro de nós devido às paixões. Isto se manifesta também com os pensamentos de vanglória e com todos os outros. E não lhe será possível ao intelecto, sufocado por tais ideias, se apresentar ante Deus, nem cingir em sua cabeça a coroa da justiça. Justamente por ter sido arrastado por tais pensamentos, aquele intelecto três vezes infeliz do qual nos falam os Evangelhos, recusou a incrível beleza do conhecimento de Deus. Inclusive aquele que, atado de pés e mãos, foi lançado às trevas exteriores, tinha o traje tecido por estes pensamentos e, devido a isso, o que o havia convidado o declarou indigno de tais núpcias. O traje de bodas é, pois, a impassibilidade da alma razoável que tem renegado das concupiscências mundanas. A causa pela qual os conceitos dos objetos sensíveis, quando se detêm em nós, corrompem o conhecimento, foi já mencionada nos “Capítulos a propósito da oração.”
Três são os chefes dos demônios que se opõem à prática . Estes são seguidos por todo o acampamento de filisteus. Eles são os primeiros que avançam nas batalhas e induzem a alma a ser malvada por meio de pensamentos impuros. Os uns difundem os desejos da gula, outros nos insinuam o amor pelo dinheiro, e outros nos excitam para que busquemos a glória que vem dos homens. Se se deseja, pois a oração pura, refugie-se da cólera; se se ama a temperança, domine-se o ventre e não lhe brinde pão até a saciedade, e no que se refere à água, mantenha-se curta.
Seja vigilante na oração e afaste de ti o rancor. Não menoscabe as palavras do Espírito Santo e golpeie com as mãos da virtude as portas das Escrituras. Assim surgirá em ti a impassibilidade do coração e, na oração, verás teu intelecto resplandecer como um astro.
