Escada I Deseille
JOÃO CLÍMACO — ESCADA SANTA
Tradução de Antonio Carneiro PRIMEIRO DEGRAU 1. Convém que antes de falar aqui para os servidores de Deus, eu comece meu discurso por seu nome santo e adorável. Assim, Deus, que é nosso rei supremo, dotou de livre arbítrio todas as criaturas racionais, as quais Ele deu o ser e a existência; no entanto deve-se notar que elas diferem umas das outras. Com efeito, umas mereceram ser, para sempre, amigas de Deus; outras são seus bons e fiéis servidores; outras não são senão maus servidores; outras estão inteiramente separadas de Ele; e por fim, outras são inimigas declaradas, e ainda que elas nada possam contra Ele, elas não deixam de Lhe fazer uma guerra sacrílega.
2. Ora, meu Pai, apesar de minhas fracas luzes, considero que amigos de Deus são as inteligências sublimes e espirituais que estão ao redor de seu trono eterno; que os verdadeiros e fiéis amigos são aqueles que, com grande ardor e perfeita exatidão, cumprem sua santíssima Vontade em todas as coisas; que seus servidores inúteis são essas pessoas que, tendo sido purificadas e santificadas pela graça do batismo, não guardaram as promessas que elas tinham feitas, e indignamente violaram a aliança augusta que elas tinham contratada com Deus; que aqueles que se separaram de Ele, ou que caminharam para longe de Ele, ou são heréticos, que corromperam a fé, ou infiéis que jamais tiveram fé; enfim, seus inimigos são essas pessoas que, não somente se sentem a margem da sua lei, transgredindo-a com insolência, como também que suscitaram e exerceram cruéis perseguições contra aqueles que serviram à Deus com amor e observaram sua santa lei com uma inviolável fidelidade.
3. Mas, como seriam necessários livros inteiros para dizer tudo o que teria que ser dito sobre essas diferentes espécies de criaturas, e que um homem ignorante como eu seria incapaz de tão grande empresa, acredito que vale mais, para obedecer aos verdadeiros servidores de Deus, cuja terna piedade me é violenta, e cujo zelo e boa vontade me apressam, eu me limitar e me fixar nas coisas que possam servir para a edificação de suas almas; ainda que, incapaz como devo me reconhecer, eu tomo a pena de suas mãos, e que, molhando-a com simplicidade em humilde submissão à seus votos pronunciados, tenha lugar, apesar de minha impotência e minha incapacidade, de esperar e de receber de minha obediência algumas graças e algumas luzes, afim de que, traçando sobre o papel de uma admirável brancura as regras de uma vida santa e pura, eu traço também em seus corações bem preparados e santamente purificados, que eu os escreva sobre cadernos misteriosos e vivos. É desta maneira e nessas disposições que vou começar.
4. Deus é a vida e a salvação de todas as criaturas racionais que Ele extraiu do nada, sejam as que creem em Ele, ou as que negam sua Existência; sejam as que são justas, ou más; sejam as que praticam a piedade, ou as que se entregam à negar a religião; sejam as que se liberaram de suas paixões, ou que se tornaram vis escravas delas; sejam as que entraram numa comunidade religiosa, ou que permaneceram seculares; sejam as que possuam ciência, ou que vivam nas trevas da ignorância; sejam que gozem de boa saúde, ou que se esmoreçam de sofrimentos deitadas sobre uma cama; sejam as que estejam na flor da idade, ou atingido a senilidade. Ora, todas essas pessoas, estão destinadas para a graça da salvação, e podem desfrutar, como desfrutam da efusão da luz, da vista e dos benefícios do sol, da variedade das estações do ano, e de todas as outras coisas que existem e que foram feitas para elas; pois junto a Deus “não há favoritismo”. (Rom 2,11).
5. Ora, eu chamo de “ímpio” aquele que, sendo de natureza mortal e tendo recebido a inteligência; evita e foge de Deus que no entanto é sua vida; que, enfim, não mais se ocupa de seu Criador como se não existisse. Insensato ! disse em seu coração : “Não existe nenhum Deus !”(Sal. 13.1) 1)
6. Chamo de mau aquele que corrompe e obscurece a lei de Deus, interpretando-a segundo seu próprio estado de espírito, seguindo sempre sua errada opinião, em algumas vezes até herética, preferindo sua autoridade àquela de Deus, suas luzes àquelas do Espírito Santo.
7. Chamo de “cristão” o fiel que, segundo suas forças, se esforçam em suas palavras, em suas ações e em toda sua conduta, caminhar sob os estandartes de Jesus Cristo, e por meio de uma fé pura, sincera e ardente, de uma vida santa e por uma caridade inflamada, ser totalmente devotado à Santíssima Trindade.
8. Chamo de “amigo de Deus” aquele que usa segundo as regras da justiça e da temperança, coisas que ele recebeu de Deus conforme a natureza, e que não negligencia nenhuma das boas obras que ele pode fazer.
9. Chamo de “homem casto” aquele que, no meio das tentações, das armadilhas e das agitações, toma para si sábias precauções, que ele reproduz em sua conduta os costumes dos que estão fora de todo perigo.
10. Chamo de “monge” o homem que, em um corpo terrestre e corrompido, se esforça, como se ele estivesse livre de seu corpo, de imitar o estado e a vida das inteligências celestes.
11. Chamo de “monge” o homem que, em todo tempo, em todos os lugares e em todas as coisas, segue exatamente a lei do Senhor, e se conforma perfeitamente à sua Santa Vontade;
12. Chamo de “monge” o homem que, fazendo violência à natureza, não cessa de vigiar seus sentidos, e de domar seus apetites desregrados.
13. Chamo de “monge” o homem que, conserva seu corpo em santidade, sua língua na pureza, e que orna seu espírito com as luzes do Santo Espírito;
14. Chamo de “monge” o homem que, dia e noite, detesta e chora seus pecados, e não perde de vista o pensamento salutar da morte.
15. E por “renúncia ao mundo”, entendo o ódio que leva à tudo o que os mundanos amam e louvam, e o abandono voluntário dos bens caducos e perecíveis, em um desejo e esperança de obter e possuir bens sobrenaturais.
